terça-feira, 9 de janeiro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Quase cinzas de um espólio

Aparecido Raimundo de Souza

UM DIA DECIDI IR EMBORA. Sair por aí, sem destino, buscando sonhos e aventuras que nunca conseguiria realizar se continuasse trancafiado dentro de meu apartamento.  Queria ver gente nova ao meu redor, atentar para coisas diferentes acontecendo em outras ruas, praças e cidades. Mudar os ares, as paisagens repetitivas e esquecer, de alguma maneira, os dias sofridos e cheios de agonias e tristezas, tal como se fosse um velho (como se proclama à boca miúda) dobrando o Cabo da Boa Esperança, olhos sem luz, os ombros derribados e enfraquecidos, as carnes frágeis e carcomidas pelas muxibas contraídas com o peso danoso dos anos.

Almejava esquecer também os amigos de toda hora, os falsos amores que juravam mentiras com respingos de beijos de novelas.  Sonhava viver aventuras como as que lia em livros cheios de heróis e homens valentes. Precisava atravessar os umbrais da porta da sala, subir vales e montanhas, flutuar como um duende, descer morros, enveredar por sendas obscuras, parar final de tarde, à beira de uma montanha encantada e me sentar sem pressa, horas depois, à margem de um rio que cantasse o murmurar dos segredos de suas águas só para mim.

Minha alma, acastelada numa ampulheta, compactava meu tempo a ser vivido. Todo meu ser, aprisionado numa vertigem incontrolável, carecia de espaços maiores. Necessitava se desprender do corpo físico e contemplar matas e florestas, desvendar segredos ocultos entre os nimbos de suas sombras. Sentir o azul que existia lá em cima, no céu, aquele azul sem manchas, sem deformidades, sem borbulhas, cujo infinito, exatamente por ser intransponível, da janela do meu apartamento me seviciava as vistas não me permitindo enxergar além, como sempre tivera vontade.

Então tomei coragem e desarraiguei. Por todas essas razões e outras que não pontilhei, cortei o cordão umbilical e parti. Peguei as coisas de maior necessidade ao meu indispensável e me flagrei em marcha acirrada, persistente e implacável. No mesmo gume da faca, contente e gozoso, por ter tomado a decisão que achei a mais acertada para aquele momento que considerei infinitamente mágico e surreal. Não pensei e nem passou pela cabeça que, agindo daquela forma, estivesse olvidando de todos. Não estava. Apenas triunfava sobre meus destroços fugindo, arredio dos meus agouros mais assombrosos.

Nunca cogitei verdadeiramente me apartar, principalmente das raízes que me prendiam tanto tempo num só lugar. Que me aliançavam, cativo, submisso, arraigado, chumbado num espaço que não me pertencia. Em absoluto, confesso! Jamais cogitei tal condição. Apenas busquei veementemente me ajustar dentro de outro estado mais ameno e hospedeiro, urbanizado e investido num âmago espirituoso que não me trouxesse sofrimentos ou que me desaferrolhasse da minha identidade e junto, de roldão, me degradasse as digitais.

De certa forma, consegui abarcar meus objetivos. Hoje, distante do meu antigo mundinho, me pego, às vezes, apatetado, tentando achar, em algum embaraço adormecido, o lugar onde me extraviei. Em que ponto da estrada longa e cansativa, exatamente em que lugar da marcha desvairada deixei a vida parada, lancetada, rasgada, rachada, para enfrentar a decisão compromissada de fugir das sarissas pontiagudas das fatalidades e descalabros que me flagelavam? Em que altura optei por seguir em frente, correr atrás da busca insana, obstinada e babélica, de pescar sonhos, apanhar quimeras com as mãos vazias e restaurar anseios que nunca se concretizariam?! Dou graças de nunca ter logrado tal intento.

Rachei fora, é verdade. Viajei extraindo, esquecendo, criando mágoas, deixando pessoas, seres que me amavam, que me odiavam. Mesmo não tendo todos meus sonhos realizados, abalei em frente. Larguei o medo, estanquei o receio, parti, descumprindo o périplo. Por essa razão, nesta hora, aqui onde estou, sou feliz. Não só isso. Pego e me vejo plenamente satisfeito.  Se tivesse ficado, bem, se tivesse ficado naquele lugar de outrora, constrangido entre o partir e o ficar, reprimido entre o remoinho do talvez, ou do quem sabe, não me sentisse réprobo e imbecilizado, ou quem sabe, por outra, morresse por dentro um pouco do que sou e, sob nenhuma circunstancia me presenteasse com o bafejo do arrojo de encarar o espelho e admirar a tez que ali me espreita, renovada, sorridente, com a conceituação forte e aberta em pleno regozijo de satisfação e deleite.

Tivesse me acovardado, agora, nesse momento, não seria apenas um ser incompleto, truncado, mutilado, um esqueleto abandonado, ponto de apoio a noiados e desocupados que se concentrariam por cima de meus despojos como ratos famintos em busca de uma nova esperança para continuar respirando. Seria um merda, um desgraçado, um ser vazio. Incompleto. Oco. Quem sabe, me deparasse comigo, vagando contratempado por porões escabrosos, ínvias vielas, como féretro pó, insepultas borralhas, resíduos consumados. Talvez assemelhado ao eterno e soberbo Fantasma da Ópera, entre hermas e bustos de figuras grotescas, me catrafilasse no encalço de uma igualmente meiga e caliente Christine.  
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Cachoeiro de Itapemirim no Espírito Santo. 9-1-2018

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2 comentários:

  1. Parabéns! Ainda bem que você "agarrou" com "garra" a oportunidade que lhe surgiu e hoje faz o que gosta e por isso mesmo é "bem sucedido". Sonhos de muitos e que poucos conseguem, justamente por manterem-se aprisionados as suas "raízes", por medo ou preconceitos diversos.

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  2. 👏👏👏👏👏👏sensacional. Amei. Uma delícia de se ler. Sucesso sempre! Feliz Ano Novo.

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