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Na edição de hoje da Folha
de S.Paulo, uma das manchetes é “É melhor Lula perder politicamente a ser vitimizado, afirmaTemer“.
Em português – seja em
Portugal, seja no Brasil, seja em português formal ou informal – uma coisa
nunca é melhor a outra; uma coisa é sempre melhor do
que outra.
E, embora traga o erro entre
aspas na manchete, o texto da reportagem traz a citação exata de Michel
Temer:
“…acho que se o Lula participar,
será uma coisa democrática, o povo vai dizer se quer ou não. Convenhamos, se
fosse derrotado politicamente, é melhor do que ser derrotado [na
Justiça] porque foi vitimizado.“
Ou seja: Temer usou a forma
correta – disse que uma coisa “é melhor do que” outra -, mas o jornalista
intencionalmente mudou a frase e a deixou errada. Por que terá feito isso?
Provavelmente por ter incorrido naquele que já dissemos ser o pior tipo de erro de português: uma hipercorreção.
Os erros de português mais
conhecidos e batidos são no fundo reproduções, em textos, de traços da
oralidade – por exemplo, dizer “ir no cinema” (um “erro” cuja origem e
legitimidade veremos em detalhe mais abaixo). As gramáticas dizem que é erro,
mas é como se exprime a maioria da população, inclusive a mais culta.
As hipercorreções, porém, são
o contrário: são erros que só comete quem tenta propositalmente “falar difícil”,
quem tenta ser artificialmente rebuscado, num nível acima das suas capacidades
– e assim acaba errando, quando, se tivesse escrito como todo mundo fala na
rua, estaria certo. É simplesmente escrever de modo diferente do que
falaria, por ter internalizado um preconceito (ou um trauma) de que, “se
todo mundo fala assim, o certo não deve ser assim“.
Especificamente, nesse caso, o
jornalista deve ter sido influenciado pela regência clássica da palavra preferível (ou
do verbo preferir). Por todo o Brasil se ouve que alguém prefere
uma coisa do que outra coisa, ou que é preferível
aquilo do que isto. Em Portugal, porém, sempre se diz
que algo é preferível a outra, e, diferentemente dos
brasileiros, os portugueses dizem preferir uma coisa a outra
coisa.
Há razões para essa
divergência: em Portugal simplesmente se usa muito mais, em muitíssimos mais
casos, a preposição “a” do que no Brasil. No Brasil, a preposição “a” quase não
é usada na língua viva, por uma razão muito simples: no Brasil, não existe
diferença de pronúncia entre o “a” de “a irmã” (artigo) e o de “deu
o livro à irmã“.
Mas em Portugal a diferença é
total, a pronúncia de “a minha mãe” e de “à minha
mãe” é tão grande e óbvia para eles quanto para nós é a diferença entre “é” e “ê”.
É por isso que, diferentemente
dos brasileiros, os portugueses não erram crase – eles pronunciam
diferentemente uma palavra com e sem crase. E, aliás, é só por isso que
escrevem a crase – porque corresponde a uma diferença de pronúncia.
No Brasil, por não existir
diferença na pronúncia entre “a” e “à” (ou “á”), duas são as consequências: em
primeiro lugar, os brasileiros não têm como saber intuitivamente quando
escrever uma crase e quando não o fazer; é preciso criar regrinhas e decorar o
que para os portugueses é simples questão de pronúncia.
A segunda consequência da não
diferenciação de pronúncia no Brasil é que a preposição “a”, tão usada em
Portugal, quase não se usa no Brasil: os portugueses dizem que, numa cerimônia,
tal e tal autoridade estarão “à mesa”; os brasileiros dirão que essas
autoridades estarão na mesa. Os portugueses falam com
alguém “ao telefone”; os brasileiros falam com alguém no telefone.
Um português bate à porta, e um brasileiro bate na porta. Um português dá um
livro a alguém, e um brasileiro dá o livro para alguém. Portugueses
assistem a filmes, mas brasileiros assistem filmes. Um português ao fim do dia
chega a casa, e um brasileiro chega em casa.
E, entre centenas de outros
exemplos, é por essa diferença de pronúncia que um português “prefere
isto àquilo“, e um brasileiro prefere isto do que aquilo.
Os gramáticos brasileiros,
porém, têm sido pouquíssimo eficientes em incorporar essas regências usadas por
brasileiros de todas as regiões e níveis de escolaridade como formas corretas e
típicas do português do Brasil. Em inglês, por exemplo, existem listas de
verbos que usam uma preposição em inglês britânico e outra em inglês americano;
em espanhol, a própria Real Academia Espanhola enfatiza, para centenas de
verbos, qual a preposição usada no espanhol da Espanha e qual a preposição
diferente usada no espanhol das Américas, com as duas formas sendo consideradas
igualmente corretas.
Só no Brasil que ainda há quem
ache (e o pior – é muita gente que acha) que todos os brasileiros precisam usar
em todos os casos exatamente as mesmas preposições que os portugueses,
ignorando que é completamente normal numa língua haver preposições diferentes
conforme a região geográfica e mesmo conforme a evolução da língua – é normal
que regências mudem com o passar do tempo.
Antigamente em português, por
exemplo, o verbo “começar” regia a preposição “de” – a forma usada era “começar de fazer”
algo, como se lê ainda em bons autores clássicos. Ainda em Portugal, as pessoas
começaram a usar “começar a” (talvez por influência do francês ou do espanhol),
e hoje em dia todos, tanto em Portugal quanto no Brasil, aceitamos que “começar
a” é o correto.
E, embora alguns puristas
brasileiros achem que, por alguma razão, brasileiros precisam usar as mesmas
regências que os portugueses, e assim insistem em obrigar brasileiros a
escreverem “preferir uma coisa a outra” ou “chegar a casa“,
a verdade é que, em sua limitação, esses puristas só repetem os casos mais
óbvios e batidos, mas há dúzias de outras regências que, em sua ignorância,
eles próprios usam diferentemente de Portugal, sem perceber: em Portugal, para
citar um entre dezenas, se diz “Precisar de fazer” (forma que ainda se
ouve sobretudo em Minas Gerais), enquanto os gramáticos cariocas e paulistas
dizem “Precisar fazer“. Se com o verbo “precisar” a norma culta
brasileira pode ser diferente da portuguesa, por que com “chegar” ou “preferir”
não poderia?
Ao insistir que brasileiros
que falam “preferir aquilo do que isto” devem, se querem escrever “bonito”,
escrever “preferir aquilo a isto”, o que os puristas acabam conseguindo é
deixar mesmo os falantes mais cultos inseguros a ponto de sem querer criarem,
como hoje na Folha de S.Paulo, um erro do tipo “aquilo é
melhor a isto” (agora sim, sem dúvida um erro
de português, já que não existe nem na fala de Portugal nem na do Brasil, em
nenhum registro, culto ou não), que só foi criado justamente pela falta de bom
senso dos puristas que não entendem que a variação linguística é natural e
parte de toda língua viva e que acham que precisam “salvar” a língua dos seus
próprios falantes.
Título, Imagens e Texto: dicionarioegramatica.com, 21 de
dezembro de 2017
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