sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Ave intercadente

Aparecido Raimundo de Souza

QUANDO OLHEI PARA A MOÇA que acabara de subir e cruzar a catraca dentro do coletivo, e que depois de pagar a passagem, viera se sentar de frente para mim, naquele banco cara a cara, olho no olho, não pude deixar de espiar para seu corpo escultural, suas pernas longas e bem-feitas, metidas num vestidinho azul extremamente curto que deixava entrever, além da sua estrutura corpórea esguia, tudo...

Tudo no sentido amplo, exceto o que havia debaixo dele, entre o espaço das coxas e a barriguinha. Com essa visão interrompida do paraíso, imaginei, em pensamentos marotos, aquele pedaço de caminho estonteante totalmente despido do naco de pano que resguardava o mais delicioso de todo o conjunto. A sua nudez fazendo provocações cênicas para a plateia embasbacada das minhas conjecturas diabólicas.

Desde que se sentara, notei que a bela colocara a mão esquerda no rosto, tampando o, parcialmente. Esse gesto me chamou ainda mais a atenção e, então, agastado pelo inseto da curiosidade, vi o que deveria permanecer oculto. Reconditoado e escondido. Um ponto nevrálgico que ela não queria mostrar por constrangimento embaraçoso. Esse lado da face, ou mais precisamente a boca, era suavemente oblíqua, o que decompunha seu encanto e aconchegava um tremor mórbido em seus lábios.

Os olhos de um azul muito claro pareciam extremamente tristes e melancólicos. O aleijo, talvez de nascença, ou quem sabe, causado por alguma enfermidade curada pela metade, deixara uma sequela vilipendiosa. Uma alteração anatômica que ela não conseguira engolir. E isso, visivelmente manifesto, constrangia, sobremaneira, aquela boneca impecavelmente linda e estupendamente aliciante.

No inopinado do meu rosto, uma sensação de desespero bailava contragosteado. Divagando num terreno desconhecido, me senti como um intruso por ter descoberto algo que não deveria. Foi como se tivesse recebido uma sentença condenatória em decorrência de um crime que eu não cometera por vontade própria. 

Obcecada pelo opróbio, horrorizada pelo ato de não se sentir à vontade, deduzi que não se contemplava feliz, embora o albor da sua juventude gritasse alto demais e dissesse exatamente o contrario. Diante desse fortuito, me tranquei num isolamento passivo. Ao breve e rascante grito que engoli num repente, fingi não ter enxergado coisa alguma.

Tipo assim, como se tivesse levado um pontapé multifacetado. Com a pancada, mergulhei, junto com seu ostracismo, num ineditismo cenográfico, onde a realidade e a dramaturgia de uma função inusitada se entrelaçaram. Pasmei dentro do chocado que se formou em mim e da ofensa enrubescida que pensei ter deixado com ela.

O tempo todo da viagem, ela se calou em seu terror, se aquietou, se amiudou a balbúrdia que sucumbiu funda em sua covardia privada, retirada, solapada no regaço da sua quase exaustão. Nessa pusilanimidade, quarenta minutos a bela elfa seguiu de rosto vedado.

Vez em quando trocava de mão, sempre escondendo a marca vestigiosa e malfadada, que lhe tirava o viço e o agraço, e a diminuía, na incontinência da dor e no apetite da agonia, o que evidentemente a levava a se sentir acanhada, ou talvez, por essa razão, a se reputar excluída e segregada das pessoas ao seu redor. O meu pedido de desculpas morreu na vontade de quem armou as palavras e se esqueceu de botar para fora, na tentativa de amenizar o que remédio não tinha.

Que desdita! Olhei para ela com ternura paterna. Com um carinho especial. Tão linda e perfeita, fustigada nas vísceras da sua insatisfação por uma deformidade à flor da pele. Imaginei que ela trazia estampada, naquele estorvo, o pessimismo inerente à sua adversidade. Eu, inconsequente e idiotizado, o fracasso obsoleto de não ter desviado a fuça para outra direção e, de arremesso, o meu assombro ou, ao menos, disfarçado, às pressas, meu descontentamento, tentando não chamar a sua vergonha para o atavio lancinante daquela degradação desumana. 

Todos nós (embora abarrotados de artificialidades as mais diversas), temos pequenos mutilos que nos neutralizam. Carregamos minúsculos defeitos, alimentamos enguiços e deformidades, sinais malévolos, alguns visíveis, outros nem tanto. Todavia, quero crer, não importa onde o nosso afogo esteja pujantemente manifesto, ou onde nosso embaraço se faça terrivelmente revés.

O fato de sabermos que alguma malformação, por menor que seja, ofusca o nosso verdor, seduz a nossa exuberância, atormenta o nosso afetivo, apavora o nosso espírito e rouba a nossa sensibilidade do ser feliz na sua melhor forma de expressão, apesar disso, entendam (todos, não importa o problema), não podemos, jamais, nos curvarmos ou nos diminuirmos a uma espécie de redenção fúnebre que habita, a contragosto, em algum lugar dentro de nosso obscuro mais secreto.

Apesar de algumas injustiças ferirem a nossa imagem, para as demais criaturas que nos cercam, ou as que necessitamos conviver no dia a dia, a nossa personalidade, ainda que truncada, incompleta e faltosa, de alguma beleza não vista por nós, essa nossa personalidade, esse nosso retrato deve valer mil vezes mais que uma dúzia de bananas adquiridas no supermercado. Em tempo algum manchemos a ternura no rosto do Eterno com as lástimas inconsequentes dos nossos abre aspas “possíveis pecados insolúveis” fecha aspas.

Na comburência do rosário de mazelas que nos rondam, mister deixarmos fugir o que não presta. Emergencial esvairmos do peito, do corpo, da alma, do sangue, as agruras. Permitirmos, sem mais delongas, que esses travos, essas tribulações escorram para o ralo, como aguas contaminadas e insalubres. Jamais nos acovardarmos diante do inverossímil, tampouco deixarmos que o receio inclemente se fixe coeso, crie físico, se torne indestrutível, massa pegadiça, contagiosa, aglutinante, ou no pior dos casos, pestifere a graus homéricos.

Esse escrúpulo, essa suspicácia feroz, necessita urgentemente ser banida, dilacerada, arrancada, extirpada de dentro de nós. Fantasmas iracundos, por mais titânicos e agourentos que possam se apresentar diante da nossa estuporação, não importa a circunstância, desabitemos de nossas digitais, para que sumam e se percam ad aeternum.  Declaremos combate-los e vencê-los. Que em nosso trilhar, em nosso amanhã, sejam esses traumatismos, apenas nuvens transitórias e passageiras.

Diante desse pó de areia que se acumula em nossas vistas, e no mesmo segundo em que se esvai (à medida que limpamos no escorrer por entre os lenços de papel), quando olhei para a moça que acabara de subir e cruzar a catraca dentro do coletivo, e que depois de pagar a passagem, viera se sentar de frente para mim, naquele banco cara a cara, olho no olho, não pude deixar de espiar para seu corpo escultural, suas pernas longas e bem feitas, metidas num vestidinho azul extremamente curto que deixava entrever, além da sua estrutura corpórea esguia, tudo...

Tudo no sentido amplo, exceto o que havia debaixo dele, entre o espaço das coxas e a barriguinha. Com essa quase visão interrompida do paraíso, imaginei, em pensamentos marotos, aquele naco de mau caminho totalmente despido do pedacinho de pano que resguardava o mais delicioso de todo o conjunto. A sua sensibilidade humana.

A sua honradez, o seu amor pastoril, bucólico e incondicional. Viajei por breves segundos no seu apego pelo próximo, na sua altivez e, sobretudo, inventei asas, enleado na PAZ DE ESPÍRITO QUE ELA CONDUZIA, GUIADA E SILENTE DENTRO DO CORAÇÃO.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do aeroporto internacional Salgado Filho, em Porto Alegre – RS. 26-1-2018

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