Helena Matos
O Governo proíbe as crianças-pais de
comerem queques nos hospitais, já a PSP faz comunicados explicando às
crianças-filhos que não devem engolir cápsulas de detergente. Estamos no
país-recreio
Sexta-feira.
Um bocadinho de neorrealismo
para justificar mais intervenção estatal. Agora são as “Cem casas no centro de Lisboa para quem não pode pagar renda.”
Dia sim dia sim, um estudo e
dúzias de ativistas, jornalistas-ativistas, ativistas-assessores, funcionários
e eleitos da CML vêm denunciar os despejos de “pessoas com baixos
rendimentos e idade elevada, que não têm capacidade para encontrar habitações
que possam pagar”. Em seguida exigem alterações na lei do arrendamento de
modo a que as câmaras definam quotas no arrendamento. Enquanto não surge essa
legislação redentora a CML anuncia medidas e intenções para colmatar a
tragédia. Como as tais “Cem habitações do município” destinadas “aos moradores
que são despejados e que têm fracos recursos financeiros” “pessoas com baixos
rendimentos e idade elevada”.
O país-recreio adora o neorrealismo.
Até o país ser governado por uma frente de esquerda havia o problema da fome.
Como se sabe em novembro de 2015 a fome deu lugar à fartura e os famintos
tornaram-se obesos. Agora temos os despejados. Pessoas de idade e pobres a
serem despejadas das suas casas no centro da cidade, mas a quem a CML,
benfazeja, acode. A imagem é bonita, mas não é verdadeira porque os inquilinos
com rendas antigas, mais de 65 anos ou deficiência igual ou superior a 60% e
carências financeiras têm um período transitório de dez anos contado a partir
do momento em que o inquilino respondeu formalmente ao senhorio sobre a
proposta de aumento de renda. Para mais considera-se que tem carências
financeiras uma família cujo RABC é inferior a 38.990 euros por ano, ou seja,
3.250 euros por mês e se o inquilino tiver de ser despejado por causa de obras
que custem 25% do valor patrimonial do edifício, o senhorio terá de pagar dois
anos de renda ao inquilino.
Como é óbvio não estão a
acontecer despejos, mas sim saídas negociadas. E de cada vez que um senhorio e
um inquilino negoceiam a legião de vereadores, assessores, técnicos municipais
e das juntas de freguesia sente-se posta de parte.
Quinta-feira.
E se o Woody Allen
responder agora afirmativamente ao convite que lhe fizeram para vir filmar em
Lisboa? Recordo que em 2012 conseguir que Woody Allen viesse filmar a Lisboa se tornou uma espécie de desígnio nacional. Grupos de apoio no facebook,
declarações entusiásticas do então presidente da CML, António Costa, e do
gabinete do ministro Paulo Portas… Era unânime que Lisboa só teria a ganhar com a vinda de Woody Allen. Este nunca veio
porque o dinheiro não chegou. Mas voltemos à minha questão: e se Woody Allen
responder agora afirmativamente ao convite que lhe fizeram para vir filmar em
Lisboa? Dizemos que não pode ser porque está a ser acusado de assédio e que em Espanha até há quem queira retirar a estátua que
por lá lhe levantaram?
Não sei o que aconteceu entre
Woody Allen e as suas filhas. Ou entre Harvey Weinstein e as atrizes que
trabalhavam com ele. Ou entre o fotógrafo Mario Testino e os seus modelos. Ou
entre o maestro Charles Dutoit e os membros da Orquestra Filarmónica Real de
Londres. Mas sei que estamos a viver um ambiente de caça às bruxas.
Quarta-feira.
Mais um atentado na Suécia. Mais uma não notícia. Desta vez foi uma
granada que explodiu junto a uma esquadra em Malmo. Há meses que a Suécia é
palco de incidentes com granadas, destruição de carros
policiais, ataques a sinagogas… As notícias sobre estes ataques na
Suécia são quase tão invisíveis quanto os dados sobre a violência em França:
certamente por andarem tão afadigados a escrever sobre o que Trump come, veste
e se dorme ou não dorme no mesmo quarto que Melania, não sobrou tempo aos
jornalistas para se informar sobre os 1031 automóveis queimados na passagem de ano em França ou
sobre as graves agressões a dois polícias em Champigny-sur-Marne.
Um dos dogmas do mundo-recreio
garante que se se ignorar os problemas eles deixam de existir. Até agora só aumentaram.
Terça-feira.
A PSP coloca um aviso na sua página de facebook explicando aos jovens que não devem engolir cápsulas de detergente. Isto é Portugal em 2018: o Governo
proíbe as crianças-pais de comerem queques nos bares dos hospitais já a PSP faz
comunicados explicando às crianças-filhos que não devem engolir cápsulas de
detergente.
Ao confundirmos a sociedade do
bem-estar com um estado-recreio acabámos desconcertados num mundo em que os
governos, para mais se socialistas, determinam desde os ingredientes das sandes
à composição sexual dos conselhos de administração das empresas e em que
consequentemente proliferam a desresponsabilização e a imbecilidade.
Segunda-feira.
Arthur Kermalvezen?
Claro que o nome não diz nada pois Arthur Kermalvezen é o rosto de uma causa
com que os jornalistas de causas não sabem como lidar. Ou melhor, sabem, mas
têm medo que lhes chamem reacionários, atrasados ou qualquer outra coisa
nefanda. Mas voltemos a Arthur Kermalvezen, o homem de 34 anos que em França é
o rosto de uma luta que envolve milhares de pessoas. Mais propriamente uma luta
que diz respeito àqueles que nasceram graças a dádivas de esperma.
Em França tal como em Portugal estas dádivas são anônimas. Quando se determinou o anonimato pensou-se
obviamente nos adultos envolvidos – o anonimato protegia-os a todos – e
acreditou-se que as crianças nascidas graças a essas dádivas nunca iriam querer
ser informadas sobre as suas origens. A mesma atitude de conseguir direitos
para os adultos à custa dos direitos das crianças continuou com as barrigas de
aluguer e as alterações no registo de nascimento das crianças que oficialmente
têm dois pais ou duas mães... Enfim, sob o estrépito das palmas com a
legislação dita avançada, para que alguns adultos se possam dizer pais e mães,
construimos monstruosidades legais que retiram direitos às crianças nascidas à
sombra desse voluntarismo.
O que Arthur Kermalvezen vem dizer é que essas crianças nascidas “de um espermatozoide desconhecido” (ou de um óvulo, ou de um útero) têm o direito como qualquer outra de conhecer a sua origem. Vou
esperar sentada pelo dia em que Arthur Kermalvezen seja notícia.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
21-1-2018
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