Aparecido Raimundo de Souza
O REPÓRTER
CHEGA À RECEPÇÃO do hotel em Campos do Jordão e exibe a sua credencial de
jornalista à garota de cabelos vermelhos, vestidinho branco e botas pretas
sinalizando que pretende bater um papo com ela.
- Senhorita Andressa Belmiro, suponho?
- Sim, sou eu.
- Bom dia. Meu nome é Tobias Maranhão, do “Jornal Grito dos
Excluídos” de São Paulo. Vamos direto ao assunto que me trouxe até à sua
pessoa. Quando tomei conhecimento da sua história, o Aloísio, meu colega da FM
local, me informou que vocês estariam aqui. Então me pus a caminho
imediatamente. Queria ser o primeiro a lhe entrevistar e a publicar uma matéria
exclusiva para o meu jornal. Juntei o que consegui a respeito, na redação, e,
eis-me, aos seus pés. Confesso, todavia, ainda um pouco pasmo. Essa coisa toda
mexeu comigo.
Andressa Belmiro acaba de descer os degraus da escada e
encara o rapaz alto e simpático à sua frente.
- O que significa concluir – disse ela em resposta ao bom
dia – que não acredita muito na veracidade dos fatos.
- Mais ou menos.
- Nesse caso o senhor perdeu tempo vindo ter comigo.
- Prove que estou errado...
- Não preciso provar nada. O repórter aqui é o senhor.
- Escute, minha jovem. É muito pouco o que tenho, a começar
pela ambiguidade da situação. Concorda que não é sempre que isso ocorre. Aliás,
nunca soube de nenhum caso, pelo menos até agora... é algo, como diria,
inédito, desde que me entendo por gente.
- Não sei o que quer dizer com esse negócio de ambiguidade.
Não entendo muito de palavras bonitas. Se o senhor veio à minha cata só para me
expor ao ridículo, ou fazer especulações em torno do que andam falando por aí,
seus colegas da imprensa, sugiro que dê meia volta, pegue seu destino e busque
uma reportagem mais consistente para levar a seus leitores.
- Senhorita Andressa, eu não vim de tão longe para brigar.
Não é melhor a gente sentar ali no restaurante do hotel e enquanto a senhorita
toma seu café me contar como tudo aconteceu?
- Terei muito prazer, desde que me leve realmente a sério.
- Sem dúvida que sim.
O casal segue em direção ao restaurante ladeado à recepção,
onde alguns hóspedes desjejuam o matinal. Andressa Belmiro prepara a sua
bandeja, com café, leite, pão, queijo, manteiga, e uma fatia de melancia. O
repórter faz o mesmo procedimento e então, tabuleiros cheios escolhem uma mesa
afastada. Acomodam-se sentando de frente
um para o outro.
- Antes de começarmos. Como é mesmo o nome do seu
namoradinho?
- Dininho Castro.
- Cadê ele?
- Cuidando de alguns detalhes. Pretendemos rachar no trecho
amanhã pela manhã.
- Legal. Bem mocinha,
sou todo ouvido.
- Deixa começar do início para o senhor entender. Tipo
assim: tudo se degringolou quando fugi da casa de meus pais.
- Fugiu?
- Sim senhor.
- E por que não saíram numa boa?
- Meu pai não queria – ou melhor, continua não querendo que
eu “fique” com o Dininho. A mãe é mais maleável e está do meu lado.
- Por que seu pai não aprova o namoro?
- Ele acha que sou muito nova. Vive falando que tenho que
estudar, me formar em alguma coisa, para, depois, pensar em compromisso.
- Desculpe a indiscrição. É falta de educação perguntar:
quantos anos senhorita?
- Quantos o senhor dá pra mim?
- Vinte.
- Fala sério!
- Acertei?
- Passou longe. Acabei de completar quinze.
- Quinze? E o Dininho?
- Dezesseis.
- Estou de queixo caído.
- Quer que vá lá em cima buscar minha certidão de
nascimento?
- Desnecessário. Estou lhe dando um voto de confiança.
- Maneiro.
- Agora se abra. Essa historinha toda não passa de pura
armação, não é?
- Não estou entendendo! Armação?
- Estou dizendo isso pela experiência como jornalista. A
senhorita inventou toda essa trama como uma forma de distorcer a verdadeira
realidade dos fatos e “aparecer na mídia”. Jogou o barro na parede e deu certo.
Vocês dois viraram celebridades.
- Distorcer? Aparecer na mídia? Jogar barro? Celebridade?
- Exatamente. No
fundo tenho diante de mim uma jovenzinha grávida do seu namoradinho, é menor,
como acabou de me confirmar, e apesar de tudo, quer ficar numa boa com a sua
família, principalmente com seu pai e tentar voltar para a casa sem que seus
velhos aluguem seus ouvidos.
- O senhor pensa isso de mim?
- Sinceramente? Sim! Esse tititi todo que corre por aí é
muito fantasioso para ser verdadeiro.
- Fantasioso? Tititi?
Andressa Belmiro se levanta de um salto. Franze o cenho.
Envermelha as faces.
- Passe bem. Nossa conversa encerra aqui.
O repórter, assustado a segura pelo braço.
- Calma senhorita. Só disse o que penso. Por um instante
apenas, se ponha no meu lugar. O que faria se, de repente, lesse em todos os
jornais que uma calcinha -, imagine só, uma calcinha de nylon comum, dessas de
R$ 1.99 ficou grávida de uma cueca numa viagem de ônibus entre São Paulo e Rio
de Janeiro. Acreditaria?
- Investigaria, como bom profissional, os fatos para ver até
onde as mentiras e as verdades se entrelaçariam.
- É o que estou fazendo, senhorita Andressa. Estou há mais
de seis meses em seu encalço.
- Não, meu prezado. O tempo não importa. O senhor, no fundo, está prejulgando e,
indiretamente, me chamando de mentirosa. Vejo isso em seus olhos.
- Decididamente não.
- Acredita na minha história? Sim ou não?
- Se duvidasse não estaria aqui sentado nessa mesa.
- Mas falou em armação, em fantasias. Deixou claro que meu
objetivo é aparecer na mídia, fazer sensacionalismos, etc. etc...
- Esqueça. E me perdoe. Fui leviano.
- OK. Vou retribuir devolvendo ao senhor o mesmo voto de
confiança que disse depositar em mim.
- Perfeito. Percebo que, embora muito jovem, a senhorita é
uma moça decidida. Tem personalidade. Sabe o que quer. Pois bem: vamos falar da
gravidez da sua calcinha. Como aconteceu?
- Como disse, eu fugi da casa de meus pais. Saímos de
Sorocaba, interior de São Paulo, há seis meses. Viramos poeira. Por fim, nos
descobrimos em Sampa. Sete meses... ou quase, longe do convívio de nossos entes
queridos.
- Chegando à capital, qual a primeira coisa que fizeram?
- Compramos as passagens para o Rio de Janeiro.
- E por que escolheram o Rio de Janeiro?
- Seria o derradeiro lugar que papai nos procuraria.
- E por quê?
- Porque no Rio não temos nenhum parente ou amigo. Se fôssemos para Belo Horizonte, por exemplo,
o pai nos pegaria num abrir e piscar de olhos, uma vez que muitos amigos nossos
de Sorocaba vivem lá. Trabalham lá. Em Brasília, tenho tias e primos. Em
Curitiba, o Dininho tem uma irmã e, em Porto Alegre, os avôs maternos...
- Continue...
- Dininho e eu resolvemos meter o nariz na estrada à noite.
Na época, levamos uma bolsa pequena, bastante discreta, com poucas roupas
dentro. O necessário somente. Depois, não queríamos chamar a atenção. Despertar
suspeitas seria fatal. O senhor sabe como é: cidade pequena, um ovo. Se uma
vivalma espirra, todo mundo escuta e grita: “Saúde, Deus te crie”. Além do que,
a galera o tempo todo se esbarra. Saímos de Sorocaba com a ajuda do “Boca”, um
chegado do Dininho. Ele tem um carro. Levou a gente até Itu. Lá pegamos o
ônibus.
- E quanto à sua idade. Ninguém abordou vocês?
- Pensamos nisso também. Dininho tem outro brother, o
“Leão”. Ele nos arranjou documentos falsos.
O resto foi fácil. Joguei uma peruca na cabeça, botei um sapato de salto
alto, me disfarcei como gente grande e aqui estamos. Belos e formosos!
- Em São Paulo. Estivera lá antes?
- Sim, várias vezes, com meus pais. Daquela vez, porém, como
estávamos empreendendo uma fuga, assim que chegamos ao Terminal Tietê, tratamos
logo de cuidar das passagens para o primeiro horário que saía em direção ao
Rio. Só deu tempo de comprarmos um lanche, biscoitos, duas latinhas de
refrigerante e descer voando para a plataforma. Foi nessa viagem em plena Via
Dutra, que a Barbie, a minha calcinha engravidou. O resto, o senhor sabe de cor
e salteado. Um mês depois, instalados em Santa Cruz, num bairro chamado
Croácia, fomos ver o jogo no Maracanã e papai que também torce pelo mesmo time
do Dininho, por azar, nos viu pela tevê, no meio da multidão. Não deu outra. Partiu
pra lá correndo. Muita falta de sorte, a nossa.
Risos.
- Como saíram do Rio e vieram parar em Campos do Jordão?
- “Boca” soube que papai iria pra lá, de carro, junto com um
tio meu e dois policiais. “Boca” avisou a gente imediatamente por mensagens
trocadas via WhatsApp. Caímos no mundo, de novo. Belém do Pará, Salvador,
Sergipe, Fortaleza, Paraguai...
- Nossa! Vocês andaram um bocado. Voltando à sua calcinha.
Quer dizer que confirma que foi entre São Paulo e Rio que a senhorita – digo
que ela, a calcinha engravidou?
- Sim senhor. Quero
deixar isso bem claro. A minha calcinha engravidou, e não eu.
- Ok. E de quem a sua calcinha “engravidou”?!
- Da cueca do Dininho. Disse isso umas mil vezes.
- Sei, sei...
- Parece incrível, mas é a pura verdade. Pense comigo: tarde
da noite, o senhor deve imaginar o clima: tudo no escurinho, a bolsa apertada,
cheia de bugigangas... escova, sandália, tênis, camisa, calça, saia... por
coincidência, no bolo, uma calcinha virgem... nunca tinha sido usada. Novinha em
folha...
- Calcinha o quê? Virgem? Você além de menor era virgem?
- Senhor, eu continuo pura. Falo da minha calcinha.
O repórter esconde um risinho maroto e disfarça a
incredulidade.
- Claro, sua calcinha... desculpe...
- Dias antes, fuga planejada corri até uma lojinha de uma
amiga de mamãe e comprei algumas roupas, entre elas, uma calcinha com desenhos
da boneca Barbie.
- Compreendo!
- É exatamente essa calcinha que prenhou. Deve ter
acontecido no solavanco da estrada. Imagine a cena. Breu total. Seis horas
ininterruptas, a Barbie colada no fofo do Calvin Klein...
- Calma senhorita. Relaxa. Deixa tomar fôlego. Quem é o
Calvin Klein?
- A cueca do meu namorado. Ele só usa as dessa marca.
- Ah! Entendi. Prossiga...
- Poltrona no fundão... perto do banheiro. Meia dúzia de
mochilas e sacos pingados, todo mundo dormindo, roncando...
O jornalista parece um babaca, a boca aberta, o rosto
apalermado.
- E agora o que vocês pretendem fazer. Qual o próximo passo?
- Dininho e eu voltaremos a Sorocaba. Sete meses depois, o
regresso. Ele vai encarar meus familiares numa boa. Afinal de contas, não tem
culpa no cartório. Esse tempo todo me respeitou. Nunca me tocou. Imagine.
Apenas nos beijamos, trocamos selinhos, essas coisas...
- O seu namoradinho não teme tomar uma coça e ser preso, sei
lá, por sequestro?
- Mamãe está do nosso lado. Os pais dele também. De mais a
mais, repito, vamos voltar não para isso que o senhor e toda essa galera da
imprensa escreveu a respeito. Tudo mentira. Lorota da braba. Eu não fui
sequestrada, nem estou grávida. Tampouco o Dininho é tarado, como apregoaram.
Coitado dele!
- Você o ama?
- Com todas as forças do meu coração.
- Voltando à “gravidez...”
- O Kelvin, a sunga do Dininho, para que não esqueça, não
vai se eximir da responsabilidade. Quero que escreva isso no seu jornal. A
cueca do meu namorado não fará papel sujo. Apesar de ter partido pra cima da
lingerie dentro da bolsa... a Barbie, sem saída, coitada, indefesa, sonolenta,
digo, a calcinha da Barbie sem saída... amedrontada, acabou cedendo...
- Fogo morro acima...
- Kevin, por seu turno, é uma peça de caráter, de brio e
vergonha. Puxou ao dono.
- O que a senhorita está querendo sinalizar com isso?
- Preciso realmente dizer? O senhor ainda não entendeu?
- Mais ou menos. Entretanto, para que engula melhor a
situação, até mesmo pelo fato de ser uma matéria extraordinária... e inusitada...
- Por certo. Estou lhe confirmando que Kelvin, a cueca do
meu namorado Dininho assumirá a paternidade. Dará seu sobrenome à Barbie. Por
falar nisso, seu Tobias Maranhão, mata uma curiosidade. Que marca o senhor está
usando?
- Como assim?!
- A cuequinha?
- Desculpe. Gosto demais da Zorba.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Copacabana, no Rio de Janeiro. 19-1-2018
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