terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Era uma vez uma democracia

A rapariga nasceu forte, mas desde cedo ficou murcha. Quarenta e três anos depois está velha e caduca, com os seus pilares podres e cada vez mais corruptos

António Ribeiro Ferreira

A última cena protagonizada pelos partidos políticos parlamentares está entre a anedota, o trágico e um caso de polícia. Os senhores e senhoras (atenção, comissão da igualdade do género, não escrevi sobre as mais de 50 espécies sexuais reconhecidas por vossas excelências) eleitos nas listas partidárias fabricadas pelos respetivos aparelhos e avalizadas pelos chefes (atenção, comissão da igualdade do género, por não ter escrito “pelas”) andaram escondidos uns meses a parir uma lei que, basicamente, é um golpe de mão nas finanças públicas.

Uma lei que a maior parte dos deputados desconheciam e que votaram no dia 21 de dezembro de cor, como aliás acontece na maioria das vezes que as almas levantam os rabos das cadeiras ou põem as mãozinhas no ar. Nada de novo, portanto.

No fundo, é o mais do mesmo num regime que já deu o que tinha a dar e está cada vez mais preso pelos arames. Os partidos, os tais pilares da democracia, além de podres, estão-se nas tinhas para o povo que os elege, como se estão nas tintas para os problemas graves e estruturais do país. O que lhes interessa são os negócios, particularmente os públicos, os do Estado, os que dão dinheiro para os senhores e senhoras da política e para os seus partidos. Interessa-lhes os negócios do Estado, os negócios em que podem ganhar dinheiro, arranjar bons empregos, para eles e para os amigos e amigas.

Os partidos, os tais pilares da democracia, são os donos disto tudo e pouco lhes interessa se os portugueses os odeiam cada vez mais e recusam, em número crescente, participar nas charadas eleitorais para Belém, para São Bento ou para as autarquias locais. Tanto lhes interessa. São sempre eleitos, votem 90% dos eleitores ou apenas 10%. A abstenção crescente é uma cena que não lhes assiste.

Os partidos, os tais pilares da democracia, sabem disto tudo há muito tempo e é por isso mesmo que recusam qualquer reforma eleitoral que ponha em causa o seu poder. Os partidos políticos não só sequestraram o Estado como a própria democracia. São os donos disto tudo, pais de toda a corrupção, e fecham-se cada vez mais nas sedes partidárias com medo do povo.

Evidentemente que ninguém lhes faz frente. São donos e senhores do Estado, da democracia, e querem cada vez mais ser os donos das vidas dos cidadãos. Evidentemente que nada é eterno e tudo acaba, mais dia menos dia. Foi assim com os terroristas da i República, os fascistas da segunda, e será assim também com os corruptos da terceira.

Nos tempos que correm, gostem ou não os democratas de pacotilha, o mundo está a mudar rapidamente e as velhas estruturas políticas estão a ser postas em causa um pouco por todo o lado, como nos EUA e na Europa. Trump venceu as presidenciais em 2016 e está a dar cabo do sistema corrupto de Washington, partilhado por republicanos e democratas. Na Alemanha, a AfD de extrema-direita é a terceira força parlamentar; na Áustria, a extrema- -direita está no poder; em Itália, depois da derrocada das forças políticas tradicionais, são os novos partidos populares que lideram as sondagens para as eleições de março; em Espanha, tanto o PP como o PSOE estão ameaçados à direita e à esquerda; e, na Grécia, a extrema-esquerda no poder rebentou com os socialistas e transformou-se numa força neoliberal que está a ultrapassar a crise económica e financeira. Já para não falar de França, onde os partidos tradicionais levaram uma sova eleitoral do movimento de Macron.

Num mundo em mudança, os pilares da democracia portuguesa recusam mudar seja o que for, nomeadamente a lei eleitoral, e agora ensaiaram esta manobra clandestina para sacarem mais uns milhões aos contribuintes.

Bem podem os guardiões do regime andar a pôr água na fervura, prometer novas práticas no futuro, jurar a pés juntos que a transparência está aí ao virar da esquina, que já ninguém acredita nesta gentinha que, ao longo de 43 anos de democracia, deixou o país cair na bancarrota três vezes e condenou os portugueses a uma pobreza crónica numa Europa cada vez mais rica.

Os portugueses estão pobres e sem terras prometidas, e nenhum político sai da política mais pobre. Pelo contrário, saem prósperos homens de negócios, senadores bem instalados na vida a debitarem quilómetros de palavras sobre o socialismo, a socialdemocracia, a justiça social e o papel fundamental do Estado na vida dos cidadãos. Vendedores de banha da cobra que condenaram o país a esta apagada e vil tristeza.

Isto não vai lá com afetos. Só endireita com uns valentes tabefes.
Título e Texto: António Ribeiro Ferreira, jornalista, jornal “i”, 9-1-2018

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