terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Rotina alterada

Aparecido Raimundo de Souza

A VELHINHA ENTROU NA PADARIA e se dirigiu à moça do balcão.
Bom dia, princesa. Um copo de água, por gentileza.
Com ou sem gás?
Nem um, nem outro. Torneirol, de preferência. 
Como, senhora?  
Torneirol.   
Não entendi.   
Da torneira.
Ah, desculpe. Ficarei lhe devendo.
Por quê?
A balconista faz cara triste...
Roubaram a torneira.
Roubaram a torneira? 
Sim senhora. Está vendo a pia aqui atrás de mim cheia de xícaras e pratos?
Claro.
E o buraquinho úmido, ainda escorrendo, na parede, também dá para a senhora perceber?
— Sou velha, digo usada, pareço meio caduca, mas ouço perfeitamente bem mocinha. De seis em seis meses consulto um cardiologista.

Ambas caíram em francas risadas.
— Pois é. O desgraçado levou a porcaria da torneira. —
A velhinha fez uma expressão séria de espanto incontido.
Quem foi o louco? Ou loucos?
Ainda não sabemos. Foi um sujeito só. Isso com certeza...
— Como a senhorita sabe?
Um vizinho da casa em frente viu quando o rapaz, um garoto aparentando uns quinze ou dezesseis anos, entrou...  
— E o imbecil não chamou a polícia? 
— Ele pensou que fosse o novo padeiro. Como esse funcionário é menor e começaria hoje pela manhã... às cinco...
Com tanta coisa para ser levada aqui de dentro, tipo leite, coador, presunto, açúcar, trigo, sonhos, empadinhas, quibes, vinhos, queijos, bolos, torradas, talheres, o sujeito perdeu tempo, arriscou a ser preso ou morto para roubar um buraquinho de torneira?  
Senhora, o ladrão roubou a torneira, não o buraquinho...  
Então... o que foi que falei? Desculpe moça.  Acho que é a senhorita quem não escuta direito.

As duas se olharam como se medissem uma a outra.  
Por aí a senhora pode perceber como andam as coisas. Nem as torneiras esses infelizes perdoam. Nem as torneiras...
E por que o ladrão teria que perdoar uma torneira? Acaso ela fez algum mal a ele?
Modo de falar, senhora.
Deve ser um encanador frustrado que gosta de ver buraquinhos abertos. Para entrar aqui e levar uma torneira, bem, moça, que se há de fazer?  É o fim da picada! Outro dia vi um homem perto de onde moro com meu neto roubando um poste no meio da rua...

A atendente se quedou num sorriso bonito deixando à mostra uns dentes brancos e perfeitos.
No nosso caso aqui, não foi só uma torneira, senhora. Ele roubou todas...
Todas?!
Sim, senhora, todas! 
Que doideira!...  
Além desta, ele carregou as outras quatro dos chuveiros dos banheiros dos empregados e as cinco que serviam à cozinha. Sem contar nas tampas...
— Tampas?
— Dos vasos sanitários. Não deixou uma sequer!
Estou pasma! Voltando às torneiras. O que ele fez com o líquido?
Líquido? Que líquido?

Meu Deus, filha, o que saía dessas torneiras.
Claro, o líquido Meu Pai do céu!  Que viagem. O líquido, a água...
Sim! A água?!
Não sei exatamente. Seu Florentino falou para o gerente que o ladrão fechou o registro geral.
Quem é seu Florentino?
Um dos donos.
Sei, sei!
Então o vagabundo deveria conhecer bem o pedaço e o local exato do registro?
Pelo que tudo indica, a senhora tem toda razão...
Ou alguém aqui de dentro deu uma mãozinha a ele...
Não havia pensando nessa possibilidade. Mas quem se prestaria a tal sujeira? Seu Florentino é um pai para todas nós.

Qualquer uma de vocês que trabalha aqui. São em quantas?
— Oito. Eu e mais três agora pela manhã e, à tarde, um batalhão de quatro chega para nos render.
Pode ter sido uma delas ou...
Ou...?
Você mesma!
Pirou da cabeça, senhora? Por que faria isso? Trabalho aqui desde que inauguraram. Como disse e repito, seu Florentino é um pai...
— Direi o que penso. Vai ver se apaixonou por um rapaz. Esse rapaz especificamente que entrou aqui e... deu a dica para ele... a rotina, os movimentos... mapeou o local do registro... somando tudo, na expectativa de se darem bem...
— Acho que a senhora está de brincadeira comigo. Eu jamais faria uma coisa dessas...
— Sei que não. Talvez suas companheiras. Nunca se sabe...
A garçonete ficou séria e, por alguns instantes, perdeu a voz.

A velhinha, todavia, voltou à carga.
— Esqueça tudo o que falei. São apenas conjecturas.  Gosto muito de ler romances policiais. Princesa linda me mata uma curiosidade. E o sistema de segurança? Vejo câmeras espalhadas e estrategicamente posicionadas...
Essas geringonças ai não servem para nada, dona. Nenhuma delas gravou coisíssima alguma...
Como não gravou?
Na hora que o sujeito arrombou o cadeado da porta de ferro, adivinha o que aconteceu?
— O cadeado botou a boca no trombone?
— Senhora, pelo amor de Deus. Não brinca. Faltou luz!

Ou foi cortada propositalmente...
Quem sabe!
Vendo a coisa pelo lado prático, puro azar para o comércio e sorte para o meliante!
Para quem?
— Para o meliante. Mesma coisa que ladrão. Meliante, ladrão, gatuno, tudo farinha do mesmo saco...
— Nisso aí de meliante fecho com a senhora. Quanto ao azar...
— O que tem o azar?
— Cairá em nossa “cacunda”. Vamos ter serviço em dobro depois que as novas torneiras forem colocadas e a água voltar ao normal.
Que coisa mais sem sentido! O filho da mãe roubar logo os buraquinhos?
Não, senhora, as torneiras. O ladrão roubou as torneiras... e as tampas...
Eu sei moça, eu sei. Por acaso pensa que sou surda? Passo a impressão de ser burra?!
Desculpa senhora. Claro que não. Mudando o rumo da prosa. A senhora vai querer alguma coisa? Um café, um suco, um pão na graxa?

Como é que é? Pão na graxa? Que merda é essa? É para o cliente, logo que acabar de comer dar o fora escorregando? Kikikikikikikikikiki...
A balconista finalmente se acendeu magnânima. Não pode deixar de achar graça no que a simpática anciã acabara de dizer.                                      
— Saiu sem querer, senhora...
Esqueça mocinha. Vocês jovens, têm cada linguajar. Traduz aí essa história de pão na graxa?!
Pão na graxa é pão com manteiga.
Então se fosse pão com margarina, você chamaria a graxa de pasta, tipo essas que a gente passa nos calçados? “Ei, fulana – diria você a uma de suas colegas de infortúnio —, manda ai um pão com pasta de passar em sapatos. A freguesa quer no capricho. Que venha brilhando...”.
A recepcionista novamente escancarou um riso dócil. 
A senhora é muito maneira... digo engraçada.
Virando as costas, a setentona deixou o recinto, fagueira e melodiosa. Da calçada ainda podia se ouvir a sua voz:
“Pão na graxa... vou morrer e não ouvirei tudo. Era só o que me faltava. Onde já se viu? Pão na graxa! Kikikikikikikikikiki...”. 

DIAS DEPOIS, A MESMA VELHINHA APARECEU ESTAMPADA NOS JORNAIS. PRIMEIRA PÁGINA. DEU NO NOTICIÁRIO DO MEIO DIA. FORA PRESA EM FLAGRANTE JUNTO COM SEU NETO DE DESSESSEIS ANOS. OS CRIMES: ASSALTOS E FURTOS DE TORNEIRAS E TAMPAS DE PRIVADAS EM OUTROS COMÉRCIOS DO BAIRRO.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 6-2-2018

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