terça-feira, 29 de março de 2011

O meu jardineiro morreu...

...quando eu me chamar saudade,
não preciso de vaidade, quero preces e nada mais...
Nelson Cavaquinho, "As Flores em Vida"


Waldo Luís Viana

Chamava-se Jorge, tinha 53 anos e morreu afogado no domingo, em Cabo Frio. A princípio, uma notícia prosaica, aparentemente sem qualquer importância diante da listagem de ausências que nos acostumam a ver, passivos, na mídia. Mais um sinistrado na longa procissão humana que parece jamais ter fim...

No entanto, para mim tal acidente envolve particular repercussão. Ele era meu amigo e cuidava de minha casa. Comportou-se como anjo, a partir de minha enfermidade, ciente de que não poderia praticar grande coisa, para além das lides intelectuais. A água, a luz elétrica, o jardim, a poda da grama e o cuidado com as flores – tal era o seu grande mister, enfim, tudo realmente essencial para a sobrevivência.

Entre conversas sobre temas da vida, percorremos todos os seus liames sinuosos: a política, a religião, o futebol, o dinheiro, os amigos e suas traições, os inimigos e nosso perdão, enfim, quase tudo em menos de três anos percorremos, ele dizendo ser simples jardineiro, eu respondendo que a sua presença coloria minha solidão desvalida, de homem fraturado em recuperação!

Hoje, meu braço direito já está bom, a prótese de titânio só se manifestando para prever o tempo com quatro horas de antecedência, e ele sempre comparecendo ao trabalho com a boa piada, brandindo os instrumentos terríveis, a foice, o martelo e a serra, perigosos em si, mas que só usava para o bem.

Jorge era amigo da terra. Evangélico, amava a própria família, mas com energia suficiente para ser polo catalisador de amizades, frutificadas pelo aconchego e o bom papo. Considerava-se pobre, mas eu sempre afirmava o contrário: dizia-o muito rico, porque o coração batia pelos outros. E eu, admirado, por perto me sentia irmão menor.

Sentia-se devedor de Deus porque os irmãos foram embora muito cedo. E sem justificativa alguma havia sobrado no mar de espuma da existência. Argumentava, solícito, que a contabilidade divina, inextricável, ficava por conta do Criador que só nos permitia indícios. E quando escrevi um livro sobre a minha reconversão espiritual, opinava, com sabedoria, que era homem religioso, mas que jamais conseguira entender o livro do Gênesis. Eu acedia, porque certas passagens da Bíblia são realmente inexplicáveis se não possuirmos o código ou a chave secreta...

Era engraçado fazer vitamina para Jorge: oferecia e ele não aceitava. “Só como em casa” – afirmava, como se essa recusa fizesse retumbar aos céus a ampla fidelidade. Não à esposa ou ao filho, a quem dedicava extremo apreço e com os quais dividia todos os atos do dia a dia, mas a entrega de coração ao trabalho, como imperativo categórico imposto lá de cima... Jesus disse que são bem-aventurados os puros de coração. E meu jardineiro era puro, que talvez esteja vendo Deus agora, num lugar rebrilhante de luz. Eu cá, neste plano transbordante de dores e contradições, seguirei meu caminho, saudoso daquele toque em minha porta duas vezes por semana, em que, entre sorrindo e irônico, me perguntava: “como é, poeta, já acordou?”

É irônica a vida, sempre irredutível em seu percurso a qualquer sabedoria. Parece que os bons vão mais cedo e os maus ficam mais tempo por aqui, apegados à matéria. Também nem sempre é assim. Lembro-me de ter feito um livro de família para um idoso que explicava a longa existência por causa do profundo ateísmo: “se há Deus, quero viver ainda muito tempo porque não quero encontrar com Ele” – sentenciava, em estado filosófico. Nossas escolhas humanas ficam gravadas num pórtico iniludível, em que vamos compondo os escaninhos de nossos atos. Um dia, alguém vai abri-los e com certeza revelar-nos-á imensas surpresas...

É séria a morte, como afirmou um dia o mestre Machado, porque nos reconduz ao plano radical: ninguém pode nos tirar mais nada. São sepultadas as contradições e nossos pecados, que os há muitos, dissolvidos no rebuliço do perdão. Os sobreviventes olham para aquele corpo gelado, pensando na própria sorte e perquirindo a velha pergunta: “quando será a minha vez?” É por isso que, nos velórios, muitas vezes se formam rodinhas de conversas e o cadáver, por longos instantes deixado de lado, é capaz de sentir como se a sua presença ainda despertasse o incômodo de dolorosas interrogações.

Jorge era normal e não um santo. Admirava as belas mulheres e soltava palavrões, de vez em quando. Sempre me dizia não entender porque tudo aquilo que conseguia, para si e seus familiares, era mediante enorme esforço. Gozava de boa saúde, mas estava entrando naquela idade em que os homens começam a se preocupar com a alimentação e os remédios. E nisto possuía a minha companhia, que jamais tive pejo em discutir com meus comprimidos...

A solidão de minha casa vai homenageá-lo para sempre. Sei que ouvirei em minha mente as batidas na porta e a voz tonitruante e decidida ao saudar o novo dia. Como o Euclides dos sertões, compreendo que é muito difícil lidar com a morte, porém mais difícil ainda lidar com a saudade. E, parafraseando o eterno poeta Bandeira, imagino o Jorge entrando no céu: “licença, moço...” E Deus, respondendo: “entra Jorge, você não precisa pedir licença...” Sem dúvida, a contabilidade do Universo também funciona por partidas dobradas: o que se desliga aqui embaixo acende-se lá em cima...
Imagem e Texto: Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e considera que a admiração, a saudade e a gratidão nos distinguem dos animais.
Teresopólis, 29 de março de 2011

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