sexta-feira, 25 de março de 2011

O gosto da culpa

Luiz Felipe Pondé
A CULPA ME ENCANTA. Sem ela não há vida moral plena. Para mim, a vida moral começa e se sustenta no mal-estar com nossos atos e com o mundo. Não acho que o centro da vida moral seja a vaga noção de “valores”, como se diz por aí. Talvez menu encanto com a culpa se dê pelo fato de não tê-la experimentado muitas vezes. Os olhos vidrados de dor moral, o corpo dobrado pelo peso da consciência de ter feito mal ao outro são, para mim, a chave da filosofia moral. Tenho inveja de quem sente ou já sentiu uma dor moral avassaladora. Seria eu um romântico? Provavelmente sim, esse é meu melhor lado. Aviso que não faço nenhuma diferença entre ética e moral. Não tenho mais muito interesse em afetações acadêmicas. Ambos os termos, na origem, remetem à ideia de hábitos e costumes e, mais tarde, à preocupação de como cultivar bons hábitos e costumes. Com o tempo, a ética virou uma espécie de disciplina que se ocupa com o ordenamento desses hábitos (a moral propriamente dita), e a filosofia moral permaneceu mais ampla, como uma reflexão, a partir das escolas filosóficas, da vida humana e seus dramas (lembremos que a palavra “drama”, na Antiguidade, remete sempre à palavra “ação”). Prefiro a expressão “vida moral” porque julgo que seja menos carregada dos modismos éticos da nossa época. Aliás, suspeito muito de que, quando usamos a palavra “ética” hoje em dia, não sabemos a certo o que queremos dizer. Na maioria das vezes, seu uso visa meramente ao marketing de comportamento: quero projetar de mim mesmo uma imagem de alguém legal, com “valores”, e aí digo que sou “ético”. Na filosofia antiga grega, Platão, Aristóteles, estóicos ou epicuristas sempre pensaram em temos de virtudes, e não valores. Virtude é um conceito que descreve o esforço de umas pessoa em controlar sua vontade e seus desejos em nome de alguma conduta específica: ser corajoso (combater o medo), ser generoso (combater o egoísmo), ser justo (combater a crueldade e a indiferença com o sofrimento alheio), ser metódico (combater a traição amorosa). Para haver virtude é necessário haver combate, sofrimento, dor. Não há virtude no vácuo da agonia. Um dos traços bregas de nossa época é supor que se pode éter vida moral sendo feliz. A hipocrisia do cristianismo de outrora hoje habita a casa da praga do politicamente correto. Quando o cristianismo entra em cena no fim da Antiguidade, com filósofos como Agostinho, não muda o centro da gravidade da reflexão moral: a culpa como afeto da luta pela virtude permanece, ainda que com o cristianismo a autonomia grega centrada na capacidade da razão em domar a vontade se reduza em favor da noção de natureza caída e do pecado hereditário. Dependemos da graça para sermos virtuosos, nossa natureza vaidosa e orgulhosa por si mesma nunca sairá do seu pântano pessoal. A ideia de que nossa natureza humana seja um tormento me parece a mais verdadeira de todas as descrições de nossa vida. Sei que muita gente julga essa visão ultrapassada, mas sinto um prazer todo especial em ser ultrapassado num mundo superficial como o nosso. Por que superficial? Porque parasitado por engenharias para a felicidade. Somos escravos da felicidade, mas é a infelicidade que nos torna humanos. Não sou dado a acessos de culpa, mas experimento quotidianamente o tormento de minha humanidade. Sou fraco, submetido ao desejo desorientado, leio e escrevo como forma de combater a solidão do mal que me habita. Minha letra me ajuda a saber o que sou: um escravo do gosto.
Luiz Felipe Pondé, in "Contra um mundo melhor - ensaios do afeto", Capítulo 7,  página 60
Digitação: JP

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