domingo, 27 de março de 2011

Paciência de chinês

António Ribeiro (O cão de Sócrates)

Todos estes anos de convívio em São Bento tinham-me convencido que o sr. Primeiro-ministro era realmente um homem com uma paciência invulgar para um português e até para um ocidental. Governar um país como Portugal, cheio de portugueses que exigem os seus direitos, mas nunca têm deveres, exige, já de si, uma paciência de santo, mas a do meu dono vai muito além da santidade. Os cães-polícias já me confessaram que nunca viram um primeiro-ministro ser tão atacado, nem desta forma. Do caso “Diogo Infante” ao caso “Diploma”, do “Freeport” à falhada compra da TVI pela PT, passando pelo caso “Manuela Moura Guedes”, tudo lhe tinha batido à porta, mas ao contrário do eng. António Guterres ou do dr. Durão Barroso, não tinha abandonado o navio. Encalhara-o, é verdade… mas mantinha-se no seu posto à espera de melhores marés. De facto, se havia coisa que o meu dono se orgulhava de ter, além da licenciatura em Engenharia, era paciência de chinês.
Há uma semana que todos, aqui em São Bento, comiam comida chinesa nos intervalos das aulas de Mandarim e Cultura Chinesa que o meu dono exigiu que todos os seus ministros, secretários de Estado e assessores frequentassem. “Sabes, cão, há um provérbio chinês que diz ‘O fracasso é a mãe do sucesso!’ e como nos últimos meses não temos feito outra coisa senão fracassar pode ser que o presidente Hu Jintao seja a mãe do nosso sucesso, pá!”. Resumindo, andava tudo com os olhos em bico por causa da visita a Portugal do presidente chinês, a última esperança de encontrarmos alguém que nos tirasse deste buraco quase sem fundo onde nos encontrávamos. Tudo tinha sido preparado ao pormenor para agradar à delegação chinesa. O meu dono tinha feito das tripas coração e telefonado ao dr. Durão Barroso conseguiu que Garcia Pereira enviasse um fax ao meu dono com as melhores citações de Mao Tsé-Tung para usar em visitas de Estado.

Para concretizar a sua estratégia, o sr. Primeiro-ministro mandou que se pusessem bandeiras chinesas pelas principais ruas de Lisboa e pediu à ASAE que, naquela semana, não fiscalizasse restaurantes chineses e os deixasse servir comida chinesa à vontade, mesmo naqueles que estão transformados em restaurantes japoneses. Pediu ao seu amigo António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, que emitisse um alvará especial que integrasse as lojas chinesas no comércio tradicional lisboeta e incumbiu a ministra da Cultura de organizar um ciclo de cinema dedicado ao Bruce Lee. O meu dono tentara até convencer o engenheiro Belmiro de Azevedo a vender tudo a 1, 5 e 10 euros nos seus hipermercados. Enfim, Portugal transformara-se, de norte a sul, numa pequena China Town.
Para um cão como eu, com um passado de luta nas ruas pelos direitos dos cães, era muito difícil ter que engolir na visita do presidente chinês a Portugal. Não esquecia o tratamento dos chineses aos cães do Tibete que acabaram quase todos nas panelas dos restaurantes típicos de Pequim. Era este o motivo do meu ódio à comida chinesa. Eu andava até ligeiramente amedrontado com a possibilidade de fazer parte da lista de prendas do Governo português para o presidente chinês. Afinal de contas o que custava a um homem, habituado a sacrificar ministros nos seus dois Governos, sacrificar, agora, um cão?
Havia uma outra coisa que o meu dono já tinha sacrificado: o orgulho nacional: Nos últimos meses Portugal deixara de ser um país exportador de vinho do Porto, cortiça, têxteis, calçado, azeite, CD de fado, visitas guiadas ao Santuário de Fátima ou jogadores de futebol para se concentrar num único produto: a nossa dívida externa. Era tudo o que queríamos que os chineses nos comprassem. “Sabes, cão, como dizia o grande serve para fazer estrume, pá!”. Eu não aguentei o cheiro a comida chinesa no gabinete do meu dono e tive que ir arejar o meu nariz e as minhas ideias para o jardim. Nesse momento para descrever situação dos portugueses só me ocorria um provérbio chinês: “Quer a faca caia no melão ou o melão na faca, o melão vai sofrer!”.
António Ribeiro (pseudónimo), in "O cão de Sócrates", página 137
Digitação e Edição: JP

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