José Manuel Fernandes
O desafio não é fazer uns
acordos pontuais para se ir aguentando até à próxima crise e a novas eleições.
O desafio é negociar sabendo que qualquer acordo se encontra a meio caminho:
assim vencem todos
Primeiro que tudo, para que
não se esqueça: ontem à noite, depois de saírem as primeiras projeções, ouvimos
o Bloco, o PCP e uma parte relevante dos dirigentes do PS a pedirem o absurdo:
que se criasse uma situação de ingovernabilidade. Porque era isso que se
criaria se o PS aceitasse os cantos de sereia daquilo a que António Costa chamaria
mais tarde uma “maioria negativa”. Ou mesmo uma “maioria do contra”.
A forma como muitos
socialistas e muitos comentadores “compagnons de route” estiveram nos últimos
dias a preparar a opinião pública para que uma vitória da coligação podia não
ser uma vitória da coligação mas sim a de uma “maioria de esquerda” que nunca
existiu (nem há sinais que possa vir a existir), chegou aos limites do
indecoroso. A clivagem que em Portugal separa a extrema-esquerda do
Bloco e do PCP da esquerda moderada do PS não resulta apenas de uma “antiquada”
herança do PREC: é uma consequência directa de os dois partidos radicais se
colocarem fora do nosso consenso democrático, de rejeitarem a nossa economia
social de mercado e de estarem contra tudo o que a Europa representa. Governar
com eles seria tão absurdo e irreal como, em França, governar com a Frente
Nacional (que até tem um programa económico semelhante). Só uma ideia mítica,
fora do tempo e completamente irrealista do que significa “ser de
esquerda” poderia alimentar essa ilusão.
Felizmente acabámos a noite
eleitoral com António Costa a reconhecer o que qualquer líder do PS na sua
posição devia reconhecer: que governará quem ganhou as eleições e que o PS,
tendo-se candidatado com um programa diferente, não deixa de estar aberto a
negociações. Mais: apesar de um resultado humilhante se nos recordarmos do
que, na pele de um “messias predestinado”, prometeu aos socialistas e aos seus
simpatizantes, Costa pode manter-se na liderança. Mas isso depende
do que fizer a partir de hoje.
Nesta campanha António Costa
mostrou que era um político “antigo”. Um político que pensa poder enviar
mensagens contraditórias para o eleitorado sem que isso tenha um custo, apenas
porque se chama Costa e o PS se sente dono do regime. Um político que fez uma
longuíssima campanha (se contarmos com a das primárias do PS, foram 16 meses
seguidos) sem que chegássemos ao fim a perceber o que ele realmente pensa – se
é, por exemplo, mais Centeno ou mais Galamba; se é mais Helena Roseta ou mais
José Miguel Júdice, só para citar dois nomes da constelação que construiu à sua
volta em Lisboa. Tudo porque foi um político que prometeu, ao mesmo tempo,
ser mais liberal e mais estatista, “virar a página da austeridade” e continuar
com os cortes da austeridade mais dois anos. Costa é um socialista mais
centrista, mais tradicional ou mais radical? Ele não mostrou o jogo.
Tudo isto e muito mais já foi
dito a propósito dos muitos erros que cometeu desde que desafiou, e bateu,
António José Seguro. Mas os políticos “antigos” não morrem de morte súbita,
e Costa vai lutar para que isso não aconteça. Do meu ponto de vista só tem
uma forma de o fazer: demonstrar que é, realmente, o “homem capaz de construir
pontes” que os seus apoiantes tanto elogiaram. Só o demonstrará se o fizer da
forma mais díficil mas, também, mais diferenciadora: não como o chefe da
orquestra (ao estilo da Câmara de Lisboa), mas como um estadista responsável
que sabe que a política é a arte do compromisso.
É por isso que tenho uma série
de pedidos a fazer-lhe. A ele e a Pedro Passos Coelho.
O primeiro pedido é
que, quando forem a Belém falar com o Presidente da República, lhe digam que
estão sinceramente disponíveis para fazer acordos que, mesmo não sendo de
coligação – o que era o ideal -, tenham uma base suficientemente ampla para
garantir a estabilidade ao longo de toda a legislatura. Não lhes peço, como
alguns já sugeriam, que façam apenas um acordo para aguentar o barco no próximo
ano e depois voltarmos todos às urnas. Não, não e não: a situação do país é
ainda demasiado frágil para criarmos mais um ano de incerteza; o tempo que
temos para solidificar a nossa recuperação é curto e tem uma baliza no
horizonte, o fim da política de quantitative easing do BCE que
pode ser também o fim deste tempo de juros excepcionalmente baixos; e as
reformas que exigem um consenso alargado não se negoceiam, preparam e
concretizam num ano.
E este é o meu segundo
pedido: o tempo da campanha eleitoral foi o tempo de separar águas, marcar
diferenças, agora é o tempo de olhar para o dia seguinte. Em campanha até se
perdoa algum extremar de posições (embora evitável, bem evitável), agora é
tempo de aproximações. Felizmente o PS apresentou um programa detalhado e nesse
programa, mesmo traduzindo uma estratégia diferente para o país, há ideias
interessantes e que não repugnariam à coligação. Felizmente que Passos Coelho,
no seu discurso de vitória, reconheceu que há um quadro político novo, sem
maioria, que exige acordos. Não façam por isso como em 2009, ano em que José
Sócrates montou uma pantomina para fingir que procurava uma aliança apenas
para, depois, culpar os outros. Se possível, peçam já a alguns dos
vossos colaboradores para começarem a conversar discretamente e não
queiram que a negociação seja um espectáculo de cedências ou triunfos, antes o
caminho para um terreno comum.
O meu terceiro pedido é
que não desperdicem a oportunidade do próximo Orçamento de Estado. O ideal
seria, como já disse, um acordo global que levasse o PS também para o Governo,
provando que em Portugal se pode ter hábitos políticos europeus. Sem esse
acordo mais global, Passos Coelho, que quer apresentar o Orçamento até
Dezembro, tem pouco tempo. E Costa tem aí uma oportunidade de mostrar
que lidera mesmo o PS, que não é apenas uma bissectriz entre as suas diferentes
tendências.
O meu quarto pedido é
quase uma súplica: por favor não criem, ou não alimentem ainda mais, a ilusão
de que agora vai ser tudo mais fácil, que já não necessitamos de austeridade
para nada. Deitem essa palavra fora, troquem-na por rigor (é o que ela
significa em alemão), e recordem-se que temos compromissos muito pesados até
para lá de 2030, que a nossa população continua a envelhecer, que a pressão
para algumas despesas públicas aumentarem (saúde, segurança social) vai
continuar. Há crescimento, mas é pouco e ninguém deve ter a ilusão de que algum
dia regressaremos aos ritmos de outras décadas. E há não apenas muito
desemprego, como é um desemprego estrutural, muito difícil de combater. Os dias
vão continuar a ser difíceis.
O meu quinto pedido é
que não percam tempo e comecem já a tratar da reforma da segurança social. É a
mais urgente e a mais difícil de todas. Se calhar vai ser preciso ter caminhos
alinhavados já para o próximo Orçamento (lembram-se do corte de 600 milhões da
coligação para 2016? ou do de 200 e tal milhões do PS?). Não comecem
por falar de linhas vermelhas, porque assim não iremos a lado nenhum. Não
desistam de tentar tornar o sistema mais justo para as gerações mais novas,
mesmo que isso leve de novo um futuro diploma ao Tribunal Constitucional –
só que agora com a diferença de aí chegar com o apoio de uma “maioria
constitucional”.
O meu sexto pedido é
que não coloquem a próxima corrida presidencial no meio destas discussões.
Estou absolutamente convicto que o próximo Presidente terá um papel central
para fazer perdurar os equilíbrios que forem encontrados, e por isso todos os
cidadãos têm de dar toda a atenção à sua eleição, mas o carácter especial do
cargo, que é uninominal, não obriga os partidos a fazerem dele um casus
beli. A vossa prioridade, caro Passos Coelho, caro António Costa, não é
elegerem o Presidente que mais vos agrade ou que seja da vossa cor: a vossa
prioridade é encontrarem uma solução de estabilidade que não fique dependente
do curto prazo ou do cálculo político sobre o melhor momento de voltar a ter
eleições.
O meu sétimo e último
pedido é que tenham bem consciência do que o povo disse este domingo.
E o que ele disse é que queria que Passos continuasse como primeiro-ministro
mas obrigado a procurar acordos. Tal como disse a Costa que o lugar do PS não é
a namoriscar com a esquerda radical. E disse ainda mais: mostrou que não se
deixa tentar pelos cantos de sereia dos que, podendo ter tirado todo o proveito
dos anos de crise e muitos sacrifícios, só conseguiram crescimentos
negligenciáveis (caso do PCP) ou fruto da inesperada afectuosidade de uma líder
(caso do Bloco). Não tenham medo de, entendendo-se, abrirem as portas aos
diferentes extremismos pois essa probabilidade é baixa, e façam o que têm a
fazer: encarem a verdade e falem dela aos portugueses. Estes não esperam
milagres nem pediram milagres, mas as reformas difíceis que ainda falta fazer
necessitam de uma ampla base de apoio social, não resistiriam a uma
guerrilha constante. O populismo (que em Portugal mora na esquerdaradical) é
mal que haverá sempre e sempre combaterá qualquer mudança, mas não se vence
pela omissão, vence-se pela persuasão.
Portugal tem de habituar-se
a ser uma democracia madura, sem permanentes estados de angústia. Numa
democracia madura as legislaturas são para durar até ao fim, pois só assim
se pode ter tempo para as reformas. Quem perde, espera pela próxima eleição sem
a voracidade que marcou tantas intervenções públicas nos últimos quatro anos.
Tudo o que sejam cálculos para acordos transitórios que não criem as condições
para que, ao menos, possamos pensar de novo a quatro anos, só nos atrasam, só
nos prejudicam.
O mundo não acaba amanhã, em
democracia ninguém fica no poder para sempre. É duro perder quando se esperava
ganhar, mas amanhã é outro dia e, até lá, há muito trabalho de casa que tem de
ser feito, cooperando. Haja vontade – a vontade que Fernando Medina pediu no seu certeiro discurso do 5 de
Outubro.
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