Paulo Ferreira
O grande objectivo que a esquerda
pode alcançar se vier a governar não é uma mudança radical de política: é o
afastamento da direita do governo. O resto há de continuar, porque não há
milagres
A eventual entrada dos
partidos da extrema-esquerda no chamado “arco da governação” terá uma
consequência inevitável: têm que rasgar os seus programas políticos ou, no
mínimo, deixá-los no congelador de onde só os poderão retirar depois de
regressarem à oposição assumida.
Não admira. Os programas do
Bloco de Esquerda e do Partido Comunista não são programas de governo. São
programas de oposição e de protesto porque foi com essa perspectiva que foram
escritos. Não foram feitos, na sua essência concreta, para serem aplicados
porque são uma alternativa impraticável. Todos, a começar pelos dirigentes
comunistas e bloquistas, sabem disso há muito tempo. Mas nada como o embate com
a realidade para o confirmar. É esse o embate a que temos assistido nos últimos
dias.
Já ouvimos Catarina Martins
considerar “demagógica” a exigência do aumento imediato do salário mínimo para
600 euros. Mas é isso que está escrito no manifesto que o BE levou a eleições.
O exemplo mais simbólico está
nos termos do que terá sido acordado entre o PS e o BE, que prevê um aumento
das pensões até 628 euros em 0,3%. Imagine-se a indignação em torno das
“pensões de miséria” se esse mesmo aumento de 1,80 euros por mês fosse proposto
pela direita.
Outro caso: a reposição dos
salários da função pública para os níveis pré-troika deverá ser feito ao longo
de 2016 e não no primeiro dia do ano, como o BE também pretendia.
Também a sobretaxa de IRS
deverá ser eliminada em dois anos, como previa o PS no seu programa, mas
contrariando o BE que a queria extinta de imediato.
Isto são algumas das medidas
conhecidas das negociações entre socialistas e bloquistas.
Por dedução lógica, nestas
matérias concretas não poderá ser acordada coisa diferente com o PCP.
Por isso, será interessante
perceber nos próximos dias o que vai acontecer a algumas das mais emblemáticas
“medidas urgentes” que os comunistas têm no seu programa eleitoral: “Aumento do
Salário Mínimo Nacional para 600 euros no início de 2016”; “ Reposição imediata
e integral de vencimentos, subsídios, pensões e complementos retirados aos
trabalhadores da Administração Pública e do Sector Empresarial do Estado”; e
“Aumento real do valor das pensões e reformas”.
Já não falo sequer das medidas
estratégicas que faziam o esqueleto económico das propostas do PCP e do BE, que
passavam por um perdão da dívida – o Bloco apontava mesmo uma redução do valor
nominal da dívida pública de 60%, que financiaria o grosso do seu programa de
aumento de despesa pública -, pela nacionalização da banca e de sectores
estratégicos e pela eventual saída do euro.
Também o PS, para acomodar os
cadernos de encargos dos seus parceiros de negociação, está a abdicar de duas
medidas que eram o alfa e o ómega das suas propostas: a redução da TSU, que no
seu modelo económico daria um empurrão ao consumo privado e, com ele, ao
crescimento da economia, e o mecanismo conciliatório no mercado laboral.
Pois é. A tabuada é a mesma
para a direita e para a esquerda. Cumprir os limites do défice, como deve ser e
o país se comprometeu, obriga a tomar opções duras. Não se pode distribuir o
dinheiro que não se tem e a riqueza que não se cria. Durante muito tempo
teremos que continuar a ser governados sob o signo do mal menor. E isso
significa que a austeridade terá que continuar, embora em doses cada vez mais
reduzidas como, de resto, todas as candidaturas prometiam a ritmos
diferenciados. E mesmo assim é preciso que tudo corra bem, hipótese cada vez
mais longínqua.
O grande objectivo que os
partidos da esquerda podem alcançar se vierem a ser governo não é uma mudança
radical de política: é o afastamento da direita do governo. O resto há de
continuar, porque não há milagres. E não
tardará até ouvirmos que a austeridade de esquerda é muito melhor do que a
austeridade de direita. E que um aumento de 1,8 euros nas pensões feito por um
governo de esquerda é uma política social enquanto um aumento de 1,8 euros nas
pensões feito por um governo de direita é uma política de miséria e
empobrecimento. Em política a aritmética é uma ciência muito pouco exacta,
como sabemos.
Título e Texto: Paulo Ferreira, Observador,
6-11-2015
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