Helena Matos
Quando
este teu sonho acabar no jeito do costume eu estou disposta a pagar ainda mais
impostos, a ganhar ainda menos dinheiro mas ouvir-te culpar os outros é que
não. Aqui ninguém enganou ninguém.
Imagem retirada daqui, do site do PSTU |
Estou a ver-te à minha frente
com aquele jeito algures entre a nevralgia e a dor ciática que te acompanha nas
situações embaraçosas: foi um momento de esperança, se tivesse corrido bem
tinha sido… Mas – e ao proferires este “mas” o tom auto-condescendente da tua
voz dará lugar a uma ênfase acusatória – o pêcê lixou tudo.
É sempre assim: os teus sonhos
de esquerda esbarram invariavelmente na ortodoxia do pêcê. Como quem acabou de
ter uma epifania logo desatarás numa listagem das provas terrenas dessa tua
descoberta ou melhor dizendo redescoberta. Ou será que desta vez vais culpar o
BE, mais a Catarina porta-voz e as manas Mortágua?
Olha, antes que a conversa
azede vamos já combinar uma coisa: faz agora o que quiseres mas depois não te
queixes. E sobretudo não culpes os outros.
Sim. Não te faças
desentendido. Quem? Tu, o gajo porreiro da esquerda, aquele com quem gostamos
de ir de férias, de almoçar no trabalho, de conversar sobre cidades que talvez
nunca conheçamos… Tu, esse mesmo que no momento em que se trata do poder
político te tornas no nosso maior problema. Um problema muito maior que o
representado pelos interesses que se agitam no CDS, pelo destrambelhamento
congénito do PSD, pelo lobbie corporativo que é o PCP ou pelo folclore
arruaceiro do BE. Porque tu, burguês blasé como ninguém, o gajo porreiro da
esquerda que vota PS, ao contrário dos outros atrás citados, achas que o poder
te é devido por isso mesmo, por seres um gajo porreiro. De esquerda, claro.
Aliás detalhar que és de
esquerda é um pleonasmo porque, para ti, fora da esquerda só existe um mundo de
trevas, interesses, hipocrisia, ignorância, atavismo… Excepções a esta regra:
os mortos como Sá Carneiro ou os vivos que reconhecem o teu direito natural ao
poder. Valha a verdade que nem pedes uma declaração muito formal dessa
subserviência, apenas não se podem falhar aqueles pequenos detalhes: é
essencial apoiar-te em cada um dos teus ódios momentâneos. Agora é o Correio da
Manhã que te anima a veia da indignação instantânea porque, segundo o teu livro
de estilo, é uma vitória da democracia e um sinal do progressismo de António
Costa, uma cega e um cigano integrarem o novo governo mas o Correio da Manhã
escrever “Costa chama cega e cigano para o Governo” é uma mostra vergonhosa de
racismo e de intolerância. Amanhã, quiçá um juiz, um blogger ou o Governador do
Banco de Portugal substituirão o Correio da Manhã nesse papel de alvo dos teus
tiros.
Mas é nos ódios de sempre – e
aí não há nenhum que ultrapasse aquele que votas a Cavaco Silva – que se faz a
verdadeira prova entre a tua gente. Não aceitas, não toleras e não entendes que
alguém não te acompanhe no fastio e na raiva que votas ao actual Presidente da
República. Já viram esta do Cavaco? – dizes tu com ar de quem vai contar a
última anedota. Esqueces que “o Cavaco” ganhou duas vezes as eleições para a
Presidência da República e que quando se candidatou a primeiro-ministro ganhou-as
com maioria absoluta, nunca lhe ocorrendo nem a ele nem milhões de portugueses
que, para chefiar um governo, bastava somar os votos de todos os derrotados.
Como bem sabemos não é “o como
decide” nem “o que decide” que te irrita em Cavaco. Aquilo que não perdoas a
Cavaco é ele ter uma legitimidade que não advém do teu filtro e sobretudo o
facto de para Cavaco Silva o funcionamento institucional do regime se sobrepor
a tudo o mais. Ora para ti o regime e as suas instituições só fazem sentido e
só merecem ser respeitadas se e quando o regime e as instituições forem
tutelados por ti. A começar naturalmente pela Presidência da República e a
acabar no Tribunal Constitucional que rapidamente passará de intocável bastião
da República a escolho deste “histórico virar de página” caso os ocupantes do
Palácio Ratton chumbem qualquer iniciativa deste governo nomeadamente alguma da
resultante dessa espécie de PREC legislativo que tem tido lugar na Assembleia
da República nos últimos dias.
Escusas de sorrir com esse ar
mimado de quem se habituou a lamentar a
posteriori não o que fez mas sim aquilo que os outros não fizeram para o
impedir de errar: sei bem que por feitio é pouco provável que juízes do TC
alguma vez se interponham entre ti e o teu sonho. Mas caso isso acontecesse
logo os juízes seriam apeados do pedestal para onde os elevaste e acabariam nas
ruas não da amargura mas sim da fúria das redes sociais e dos humoristas do
regime. O problema de discordar dos gajos porreiros é que, exactamente por eles
se acharem porreiros, tal discordância nunca é entendida como uma posição
legítima mas sim como um ataque pessoal.
Dirás que nesta forma de
reagir o PCP e o BE procedem exactamente do mesmo modo. É verdade mas como
também sabes, eles, ao contrário de ti, não são porreiros. Como tu lhes lembras
nos momentos da tua desilusão, eles são “ortodoxos”, “paranóicos” e
“totalitários”. É claro que agora fazes de conta que nunca disseste tais coisas
e até esperas que comunistas e bloquistas se ocupem nesse exercício arrebatador
de ódio fulanizado e da engenharia social e te deixem a ti a decidir o País.
Por estes dias na Assembleia da República aprovam-se a granel e em tropel
diplomas sobre adopção, exames, procriação medicamente assistida (chegámos ao
ridículo de esperar que ao menos o PCP coloque algum travão na legalização das
mães de aluguer) enquanto baixam às comissões assuntos como a reversão das
privatizações. Já agora quando haverá tempo e oportunidade para discutir a
resposta ao pedido de ajuda lançado por Hollande?
Um país novo cheio de
estímulos e multiplicadores precisa de um homem novo. Queres enganar-te como
das outras vezes, não é? Lembras-te quando o Sócrates tinha lá as suas coisas
mas era uma máquina? Resiste a tudo, declaravas indignado com as investigações
policiais que puseste no patamar dos ataques pessoais. Os aumentos à função
pública em 2009? Era preciso dinamizar o país. O TGV? Tínhamos que apostar nas
infra-estruturas. Para tudo havia uma explicação. Com o tempo começaste a
conceder que havia um novo-riquismo na casa da Rua Castilho, mais os estudos de
filosofia em Paris e as férias de nababo russo mas era mais uma questão
estética do que ética: a mãe era rica não era? E isso também não interessava
nada. Havia sempre uma cabala. Também já tinha havido a cabala do Processo Casa
Pia.
Depois veio 2011 e o pedido de
ajuda externa. Mas o sobressalto não durou mais que umas breves semanas porque
logo passaste a acusar os credores (sim exactamente aqueles a quem esse Governo
que nunca enjeitaste tinha suplicado ajuda pouco antes) de quererem destruir o
País: a austeridade não era o resultado da nossa falência mas sim a
consequência de um pérfido plano da Merkel e da direita liberal.
Agora calaste perante o
processo que colocou o PS e o país nas mãos da extrema-esquerda: é um tabu que
se quebrou, um muro que se derrubou… e acabo aqui porque de rima em rima ainda
vou buscar as “pombas assassinadas” e o “camarada, amigo, palhaço”.
Depois quando a realidade se
impuser logo vais arranjar uma desculpa para o falhanço. Tenho a certeza que
vais reler esses patéticos acordos e descobrir neles sinistras intenções nos
teus agora parceiros. Por mim, ficamos combinados: quando este teu sonho acabar
no jeito do costume eu estou disposta a pagar ainda mais impostos, a ganhar
ainda menos dinheiro mas ouvir-te culpar os outros é que não. Fala-me de
livros, de quadros, de comida… Ou de fado. Porque agora já gostas de fado, não
é? Mas nunca digas que foste enganado. Quiseste sim enganar-te a ti mesmo que é
o mais perigoso dos enganos.
Faz agora o que quiseres, diz
o que quiseres mas por favor depois não te queixes de ninguém a não ser de ti
mesmo.
Aqui ninguém enganou ninguém.
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-