Rui Ramos
As
“posições conjuntas” de Costa com o BE e o PCP são a melhor homenagem a Passos
Coelho. Se Passos tivesse falhado, Costa não teria combinado reposições, mas os
novos cortes do segundo resgate.
Deveria ter sido ontem, mas
não foi. Sim, ontem, ao tomar posse, António Costa deveria ter reconhecido
finalmente o que deve a Pedro Passos Coelho. Dir-me-ão: está a brincar. Não
estou: António Costa deve quase tudo a Passos Coelho: deve-lhe a posição actual
do PS, e deve-lhe a possibilidade do entendimento do PS com o Partido Comunista
e a extrema-esquerda, que foi a escada por onde subiu ao governo.
Em primeiro lugar, Passos
executou o Programa de Ajustamento negociado pelo PS em 2011. Reparou a
credibilidade do país, e habilitou Portugal para beneficiar de alguma
benevolência da troika (todas as metas do memorando foram revistas) e da
cornucópia monetária do BCE. Pôs o Estado a financiar-se outra vez no Mercado
das Obrigações. Acima de tudo, conservou Portugal no euro, o que em 2012 quase ninguém
julgava provável. Mas mais: permitiu ao governo alemão tratar a Grécia como um
caso isolado, em vez de como outra prova de que a zona euro hospedava um
conjunto de países condenados a um despejo litigioso.
Mas tão importante como isso
para Costa, Passos carregou sozinho o “fardo da liderança” (célebre expressão
de Vítor Gaspar) do ajustamento. Deu assim ao PS a opção de descartar todas as
responsabilidades. O partido do PEC4 pôde disfarçar-se de partido
anti-austeridade; o partido da reforma da segurança social de 2007 teve a
oportunidade de fingir que os “direitos adquiridos” eram sagrados. Foi desse
modo que o PS se fez “alternativa”, tirou oxigénio a outros protestos, e
escapou a um percalço igual ao de 1985, quando perdeu metade dos votos depois do
ajustamento que então teve de dirigir.
As “posições conjuntas” de
Costa com o BE e o PCP são a melhor homenagem a Passos Coelho. Se Passos
tivesse falhado, Costa não teria combinado reposições com o PCP e o BE, mas os
novos cortes do segundo resgate. Mais: o PS teria sido provavelmente obrigado a
participar no governo durante o ajustamento, e não estaria agora em condições
de abraçar comunistas e bloquistas.
Passos deixou à “maioria de
esquerda” a sua suposta causa comum: o Estado social. Durante anos, os partidos
da nova maioria clamaram que o governo de Passos destruíra a escola pública e
aniquilara o sistema nacional de saúde. É
por isso curioso que em nenhum lugar das posições conjuntas apareçam as grandes
medidas para restaurar a escola pública ou o SNS.
E não aparecem, porque nem a escola pública, nem o SNS foram destruídos. E não
foram destruídos, porque não houve bancarrota, que teria sido, essa sim, a sua
aniquilação. O “Estado social” não vive só de ideologia. Vive também das boas
contas.
Costa falou ontem de um
“projecto mobilizador do país”. Como? Este é o primeiro chefe de governo desde
1976 que foi derrotado e rejeitado em eleições. Estes são ministros e
secretários de Estado oriundos, na sua maioria, de um governo que levou o país
à bancarrota e cujo líder é hoje arguido de crimes graves. Este é um governo
dependente do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, que já conseguiram
desfazer o esforçado plano de Mário Centeno. O que pode haver aqui de
mobilizador, a não ser para o Partido Comunista, que já vê entretanto “razões acrescidas para a mobilização”? É esta a mobilização que convém a um
governo que Costa caracteriza como “moderado”?
O facto é que a única base
positiva da actual situação política é a herança do anterior executivo, que
poupou o país à bancarrota e à saída do euro. Essa é a pedra sobre a qual Costa
tentará agora inventar alguma “normalidade”. O presidente da república
agradeceu a Passos Coelho. Costa não agradeceu. Mas bem que podia ter
agradecido.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
27-11-2015
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