José Manuel
Fernandes
Governo
de legislatura para reformar Portugal? Não tenham ilusões: a equipa de Costa é
"de combate", mas a pensar em eleições a curto prazo. Isto é, na
altura em que uma crise for mais favorável ao PS
Se dúvidas restassem, os
últimos dias desfizeram-nas. Abriu-se um tempo em que, na política portuguesa,
não vai apenas existir acrimónia – vai deixar de haver escrúpulos e muito menos
vergonha. Tudo sob a batuta de António Costa.
Tudo tendo em vista um e só um
objectivo: o poder e o seu exercício.
Já tínhamos assistido, entre o incrédulo e o revoltado, à forma como Costa começou por assaltar o seu
partido e, depois, por tomar São Bento, atirando borda fora, pelo caminho,
qualquer princípio ou qualquer fidelidade à matriz identitária do PS. Já
escrevi sobre esse processo, não me vou repetir. Também já tínhamos visto (aqui e aqui)
como encontrara em Mário Centeno uma espécie de alma gémea, alguém que num dia
nos aparecia como um académico responsável e meio liberal, cheio de boas ideias
para o país e, no dia seguinte, trocava todas as suas ideias, as boas e as más,
por um compromisso remendadíssimo mas capaz de o alcandorar à pasta das
Finanças.
Faltava conhecer a composição
do Governo e o seu registo político. Agora que isso aconteceu, não restam
dúvidas. Primeiro, Costa não escolheu um governo para durar uma legislatura e
reformar o país – formou antes uma equipa de combate político recheada de fiéis
e pontuada por trauliteiros. Depois, Costa não tenciona governar a não ser para
preparar as próximas eleições, venham elas mais tarde ou mais cedo – idealmente
quando o PS considerar mais favorável.
Comecemos pelas suas escolhas
para o Governo, algumas das quais são de nos deixar com os cabelos em pé. Como
é possível, por exemplo, ir recuperar Augusto Santos Silva, uma espécie de
ministro “todo-o-terreno” que deixou má memória em todos os ministérios por
onde passou (eu não me esqueço, por exemplo, de como tentou fazer aprovar
aquilo que seria uma verdadeira “lei da mordaça” para os jornalistas, ou de
como se bateu até ao fim, até aos tribunais, contra práticas de transparência
no Ministério da Educação, só para citar dois exemplos)? Como é possível que o
político que se distingue por gostar “de malhar” nos adversários políticos vá
chefiar a diplomacia? Será para fazer companhia a Eduardo Cabrita, outro político
que costuma ter como principal argumento o ser capaz de gritar mais alto no
Parlamento?
E que dizer do enorme número
de ex-governantes de Sócrates que estão de regresso? Façamos a lista: Augusto
Santos Silva, que fazia parte do seu núcleo político; Vieira da Silva, que se
preparava para substituir Teixeira dos Santos quando este se começou a recusar
a alinhar na loucura que nos atirou para a bancarrota; Ana Paula Vitorino, que
estava nas Obras Públicas – as famosas Obras Públicas de Mário Lino; e ainda Eduardo
Cabrita e Manuel Heitor, para além de Teresa Ribeiro, Marcos Perestrello e Luís
Medeiros Vieira, estes últimos apenas ao nível de secretarias de Estado.
Mas há mais e mais grave. Há
Azeredo Lopes, outra figura conhecida pela sua truculência (o que o recomenda
por certo para a pasta da Defesa) e que, como presidente da Entidade Reguladora
da Comunicação Social, foi sempre um escudo protector do governo de Sócrates e
alguém que militantemente tratou de limitar a liberdade dos jornalistas. Sendo
que ainda falta citar Miguel Prata Roque, uma verdadeira cereja em cima do bolo
pois trata-se do advogado que representa José Sócrates no processo que intentou
contra o Correio da Manhã, um processo destinado a silenciar aquele órgão de
informação. Jornalistas, cuidem-se: não terão de lidar apenas com o mau feitio
do primeiro-ministro sempre que é contrariado ou confrontado pela imprensa.
Claro que nenhum destes novos
governantes viu chegar a bancarrota de Sócrates. Claro que nenhum deles terá
estranhado o modo e padrão de vida do antigo primeiro-ministro. Claro que
nenhum se incomodou com o estilo ácido e divisivo de fazer política do agora
arguido a contas com a Justiça – muitos até foram os rostos dessa forma de
governar à “animal feroz”, um estilo que parece querer regressar em força.
É por isso que, por muito
respeito que me mereça Francisca Van Dunen, não consiga subscrever as análises
dos que dizem que a sua nomeação foi uma manifestação de apoio à magistratura
do Ministério Público e uma chapada de luva branca em José Sócrates e na sua
mania da perseguição.
Estou mais com João Miguel Tavares e quero ver para crer – isto é, se
o que se pretende não é antes domesticar o Ministério Público. É que lembro-me
também de como Costa actuou durante o caso Casa Pia, tal como acho
absolutamente impensável que, antes das eleições, tenha convidado a
procuradora-geral de República, Joana Marques Vidal, para uma reunião na sede
do PS — reunião que esta sensatamente recusou.
Mas as ligações aos governos
de Sócrates são aqui o detalhe. O essencial é percebermos até que ponto este
executivo constrói o seu “corpo de combate” com base em três pilares: os fiéis
de Costa, que ele foi recuperar um pouco por todo o lado; os socráticos que
nunca se arrependeram; e alguns jovens turcos, como Pedro Nuno Santos, que
ganharam os seus galões fazendo dentro do PS um discurso que o Bloco de
Esquerda subscreveria sem hesitar.
Claro que há mais nomes, e
muitos são figuras respeitáveis. Isto mesmo sendo notória a dominância dos
políticos profissionais e dos funcionários públicos, sendo muito raros aqueles
que alguma vez conheceram o mundo real de uma empresa ou de projectos não
dependentes de dinheiros públicos. É certo que são socialistas, mas não deixa
de ser significativo que, em 17 ministros, só dois tenham tido experiências
episódicas de gestão fora do sector público (mas não muito longe dele).
De novo o essencial também não
é esse desfasamento com a realidade da maioria dos portugueses que, nestes anos
de crise, “se viraram” e fizeram realmente pela vida e pelo país, tal como não
é um ou outro erro decasting na equipa (como é que um académico que
está há 15 anos fora do país e de quem não se conhece pensamento sobre o sector
aterra no Ministério da Educação?). O essencial é que o “governo de combate”
será, como foi bem visível no discurso de posse de António Costa, um governo
que não olhará a meios para atingir os seus fins – um governo com muita gente
que tem a mesma falta de escrúpulos que Costa teve em todo este processo.
Reparem nalguns detalhes, bem
reveladores. Num discurso onde David Dinis encontrou 14
farpas dirigidas sobretudo ao Presidente da República (este também ferrou as
suas), um discurso onde eu ainda somaria mais algumas se pensasse nas que foram
dirigidas à antiga maioria, António Costa teve o desplante de dizer que “não é
altura de salgar as feridas, mas sim de sará-las”, isto enquanto não fez outra
coisa que não dar ferroadas e, no que à boa educação diz respeito, ficar-se
pelos mínimos protocolares.
Mais: ao mesmo tempo que dava
mostras de despeito e tirava desforço dos que não conseguiram antecipar a sua
manobra pós-eleitoral, piamente dizia-lhes que “o bom conselheiro desta hora
não é o despeito ou o desforço”. Mais: o homem que abriu na política portuguesa
uma trincheira própria de inimigos onde antes estava apenas a distância de duas
visões políticas diferentes, apelou à unidade e à responsabilidade enquanto ia
dando caneladas.
É por isso que não é difícil
adivinhar o que deverá vir por aí. Catarina Martins, que funciona nestas coisas
como uma espécie de guarda avançada que vai desbravando caminho e fala como se
fosse a nova “dona disto tudo”, já anunciou que vão ser descobertas
“surpresas”. Não me custa muito adivinhar que “surpresas” o Governo está
tentado a encontrar: tudo o que justifique um défice acima de 3%. Mais: essa é
a “surpresa” que pode ser “fabricada”, mesmo que só reste um mês para tomar
decisões e assinar cheques.
Tal como as coisas hoje estão,
e a acreditar nos últimos números da UTAO e da União Europeia, Portugal tem
condições para ter este ano um défice abaixo dos 3%. Não os 2,7% prometidos
pelo anterior Governo, mas abaixo da fasquia que nos mantém ou retira do
“procedimento de défices excessivos”. Mas como se está no fio da navalha, basta
não querer atingir essa meta para que nos mantenhamos acima dos 3% de défice.
O que é do interesse do país?
Sair do grupo dos “défices excessivos”, logo ficar abaixo dos 3%.
O que é do interesse de um PS
a pensar em toda a legislatura? Fazer o mesmo, pois ganharia margem de manobra
lá para a frente.
O que é do interesse de um PS
a navegar à vista? Um défice acima de 3% pois isso permitir-lhe-á tentar culpar
o governo anterior e ter um ponto de partida mais favorável para 2016, o ano
que, para já, é preciso garantir.
Julgo por isso que este será
um primeiro teste ao grau de escrúpulos de um governo “de combate” e de uma
equipa do Ministério das Finanças onde, infelizmente, o ressentimento e a
ambição política parecem ter pegado de estaca (e lamento dizê-lo, pois tinha
uma imagem bem diferente de Mário Centeno, uma imagem que cada entrevista que
dá se encarrega de destruir).
Mas se este será o primeiro
teste, o discurso já começou a ser feito para o momento decisivo, aquele que
surgirá lá mais para a frente, o que virá quando os números não baterem certo
entre o que nos é exigido na Europa e o que exige a extrema-esquerda: o
discurso do pedido de socorro ao PSD e ao CDS, em nome do superior interesse
nacional. E vai ser assim porque PS, Bloco e PCP vão estar a marcar-se
permanentemente, cada um à procura do momento ideal para atirar o ónus de uma
crise para um dos parceiros ou, idealmente, para os que, tendo ganho as
eleições de 4 de Outubro, foram postos à margem.
É neste jogo que valerá tudo,
até arrancar olhos. É também neste jogo que Portugal tem muito a perder. Mas
Portugal, como se viu nestas semanas, não faz parte da equação, pois esta só
tem uma variável: ter e exercer o poder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-