Maria João Marques
Saber
conviver com essas raízes cristãs – que até trouxeram coisas boas como a maior
festa do ano, a do Natal – está, se se esforçarem, ao alcance de ateus
totalitários e muçulmanos.
Não falha: de cada vez que há
um atentado terrorista há vozearia alertando para a necessidade de não deixar
que o combate ao terrorismo cerceie as nossas liberdades, nem ponha em causa o
nosso modo de vida. As preocupações vão para os excessos de vigilância, a
limitação (legal ou efetiva – pelo medo) da liberdade de expressão, a segurança
cada vez mais apertada em aeroportos (e qualquer dia sabe-se lá onde).
E fazemos bem em perceber que
os ataques terroristas são acima de tudo um atentado ao nosso modo de vida
ocidental. É corriqueiro viajarmos de avião, usarmos os transportes públicos
(os alvos dos atentados de Madrid e Londres), irmos a um espetáculo e jantarmos
fora ou tomarmos um café com amigos numa sexta-feira à noite. Matar infiéis é
tanto um objetivo dos terroristas como torpedear as receitas com o turismo (e
parar esses atos satânicos que são os divertimentos de férias, quase todos
muito pouco piedosos, dos turistas) nos locais que atacam – Sharm El Sheik e
Paris, com os turistas a fugir, que o digam.
Mas curiosamente convivemos
muito bem com outros ataques ao nosso modo de vida.
Na verdade até há abundantes
europeus que os iniciam, muito prestimosos na sua proteção dos muçulmanos
residentes na Europa. O André Azevedo Alves já aqui alertou para o perigo de passarmos a vida
a repudiarmos a sociedade livre,
próspera, diversificada e respeitadora dos direitos e liberdades dos indivíduos
que é a Europa. Temos culpa de tudo: da pobreza que se vive nos regimes
corruptos aos atropelos aos direitos humanos pelos déspotas. E no terrorismo é
como nas violações: a culpa é das vítimas, que estavam a pedi-las. A culpa é
inevitavelmente da invasão do Iraque, antes da divisão da Palestina, antes
ainda dos protetorados europeus no Médio Oriente, do colonialismo, das
cruzadas, do exército de Vespasiano que vergou a Judeia, e um quilométrico etc.
até ao Big Bang. Tal como os colonizadores queriam educar os selvagens que
governavam porque não lhes reconheciam grau civilizacional, também agora os
eternos auto-fustigadores dos males ocidentais tratam os outros povos (ou
grupos) como crianças que apenas são capazes de responder a interferências e
nunca de decidir o seu destino.
E, cá na Europa, os pobres
muçulmanos têm de ser protegidos de uma realidade absolutamente terrível (a
ponto de o horror de um genocídio médio empalidecer perante ela): as expressões
públicas da religião cristã. O que é inteiramente justificado, reparem: as
almas sensíveis dos muçulmanos – tão sensíveis que em numerosos casos
frequentam mesquitas radicais que incitam à violência, e que declaram apoio a
atentados terroristas e ao ISIS – têm de ser preservados de andarem pelas ruas
desprevenidos e depararem com o escândalo que é um presépio na via pública.
Em Dezembro de 2011 estive em
Bruxelas com as minhas crianças. Vimos a imensa árvore de Natal e o presépio da
Grand Place. Ao pé do Manneken Pis havia outro presépio na
rua, e – certamente por estarem já endurecidas com a violência das séries
infantis – as crianças entusiasmaram-se mais com as figuras ofensivas do Menino
Jesus e família do que com a mascote da cidade. (Eu, já mais mundana,
entusiasmei-me com uma pintura mural do Tintin e do Capitão Haddock na lateral
de um prédio próximo.)
Pois bem, a árvore de Natal da Grand Place não existiu em 2012,
porque se considerou que tal símbolo de uma festa católica ofendia os
muçulmanos residentes na Bélgica. E o presépio foi atacado o ano passado por um
contingente das FEMEN. Também em 2014, um tribunal francês em Nantes ordenou a retirada de um presépio de um edifício municipal da
zona – e vários outros presépios em locais públicos geraram angústia e, quem
sabe, corridas a psiquiatras nos franceses mais suscetíveis.
Na Grã-Bretanha é o costume:
já é malvisto desejar Merry Christmas em vez do pan-religioso Seasons
Greetings. Um anúncio anglicano ao Pai Nosso foi banido das salas de cinema. E nós por cá – que somos europeus modernos – temos decorações
públicas de Natal já esterilizadas de religião.
Como a mim não me chocaria ver
edifícios públicos celebrando e apontando festas das religiões que têm comunidades
numerosas no meu país (que bonita ficaria a Assembleia da República decorada
com castiçais de sete braços para celebrar a Hanukah, por exemplo), escapa-me a
parte em que o reconhecimento público de uma festa religiosa da religião da
maioria da população pode ser ofensivo. Mas isso sou eu, uma rústica que ainda
não percebi que temos de nos penitenciar por sermos o que somos.
Claro que nem só muçulmanos (e
nem todos) se ofendem. Os ateus totalitários ofendem-se ainda mais com a
expressão pública da religião. Sobretudo da cristã, que ainda vivem num trauma
(próprio de adolescentes) contestatário às raízes culturais onde nasceram e
cresceram – e que permitiram a criação da tal sociedade livre. (Já do islão é
proibido referir a maneira amável como tratam as mulheres ou o apoio de tantos
clérigos ao extremismo e ao terrorismo.)
O Natal é ‘a’ festa do mundo
ocidental; recusá-la é o sintoma máximo do repúdio pelo ocidente. Claro que é
uma festa familiar para muitos não crentes e celebra o solstício de inverno
para os hippies. Mas tem raízes cristãs. Saber conviver com essas raízes
cristãs – que até trouxeram coisas boas como a maior festa do ano – está, se se
esforçarem, ao alcance de ateus totalitários e muçulmanos. Mais um bocadinho e
até perceberão que orgulharmo-nos da Europa implica orgulharmo-nos (podendo
notar-lhe os defeitos, que os teve em abundância) da cultura que nos deu as
catedrais góticas e os frescos renascentistas. E o Natal. É fulcral aceitarmos
de onde vimos para apreciarmos o que somos.
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