quinta-feira, 13 de abril de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Óbices

Aparecido Raimundo de Souza

1
EU CORRIA atrás do gato, e o gato, espavorido, corria na frente, claro, corria de mim, e eu corria, e ele fugia numa ânsia louca e determinada de se livrar da minha figura autoritária, funesta, tudo assim, numa velocidade estupidamente assombrosa. Nesse não me pega, não me larga, me solta, por favor, me deixa, o bicho derrubava vasos, subia em sofás e pufes, cadeiras e mesas. Saltava plantas, tentava as janelas, mas as janelas estavam fechadas, divisava as portas, mas as portas também se achavam aferrolhadas. Nessa briga de gato e rato, ou melhor, de dono da casa furioso e gato dando uma de esperto, eu jogava no infeliz o que ia achando pela frente. Almofada, travesseiro, livro, laranja, grampeador, bolsa velha cheia de brinquedos da minha neta, uma mala de viagem abarrotada de cadernos e livros infantis, um vestido da empregada, um cabide quebrado, um par de botas da minha filha. 

E nada de conseguir acertar o gato. E o gato corria, pulava, saltava, miava, e eu atrás, feito um louco, débil mental desses de carteirinha e sindicato. A casa elegantemente mobiliada, além de grande e espaçosa, contava pelo menos com três ou quatro saídas para um quintal, que, por sua vez, se perdia na imensidão para as bandas bem funda dos fundos. Nesses fundos, árvores frondosas e copadas se erguiam imponentes, numa majestade ímpar. Salete, a serviçal, enquanto eu corria feito uma pamonha, ria feito uma palhaça e para embalar as risadas alegres e altas, todavia sem graça nenhuma, cantarolava, batendo palmas, a voz rouca de taquara rachada.

— Atirei o pau no gato tôtô, mas o gato tôtô, não morreu reu, reu, dona Chica caca, admirou-se se do berrô, do berrô que o gato deu. Miauuuuuuuuuuuu...

2
Gritei à infeliz que parasse com aquele cantochão idiota, mais parecia um mantra de macumbeiro de subúrbio que modinha pra embalar defunto em missa de sétimo dia. Se não desse um tempo, eu acabaria correndo também atrás dela, depois que acertasse o fígado do bichano e pusesse um ponto final nas traquinagens do maldito indigesto. Mas ela, em meio da confusão formada, ou não me ouvia, ou se fazia de desentendida, ou queria pagar pra ver se, de fato, eu teria coragem de sair no encalço dela atirando, igualmente, o que viesse ao alcance dos olhos.

De repente, o gato embrenhou pelo corredor e entrou num dos quartos da casa, exatamente o de hóspedes e se enfurnou embaixo da cama. Saltei na porta, como um desesperado à tábua da salvação, e tranquei-a por fora, à chave, evitando que o desgraçado desse um rebote e novamente retornasse para o corredor.
— Daí você não me escapa, infeliz.

Porta por fora, aldravada, guardei a chave no bolso da calça.
— Quero ver você sair daí maldito. Gato filho da mãe. Capeta.

3
Salete, por cima do meu ombro, espiava curiosa. Lembrava uma sardinha dentro da lata procurando um buraco para se livrar do aperto que as outras, encarceradas como ela, imprimiam. Mais que isso, insistia em mostrar, para a minha irritação, que não passava, na verdade, de uma hiena idiota, que não pararia de rir, nem que lhe desse uma martelada bem dada no meio da cabeça:

— Atirei o pau no gato tôtô, mas o gato tôtô, não morreu, reu, reu - dona Chica caca admirou-se se do berrô, do berrô que o gato deu. Miauuuuuuuuuuuu...

— Sua peste — bufei suando em bicas — Para com essa merda de música ou correrei atrás de você.

— Calma, seu Tomás. Só estou tentando me divertir...

— As minhas custas ou às custas do gato?

— Dos dois.

— O quê?? Sua vaca... vou...

Desandei a correr, desta feita, atrás da criada, que, ao ser agarrada pelo braço, me escapuliu e desembestou, destrambelhadamente, pelos cômodos, refazendo, agora, os passos do gato, só que ao inverso.
— Eu te pego, sua sem vergonha. Eu te pegoooooooooooo...

4
Salete não se fez de rogada. Vendo que, de fato, eu não brincava em serviço, que o propósito, realmente, se resumia em botar-lhe as mãos nos costados, correu – insofreável - pulando feito pipoca. Saltou o sofá, escalou a mesa de centro no centro da sala, subiu na cadeira do papai, quase tropeçou e caiu de fuça no chão. Ficou de quatro, a saia curta que usava subiu até a altura do umbigo, deixando as claras uma calcinha preta que apareceu mostrando um fiofó fabuloso, contudo, não perdeu a pose.

Quando a encurralei na mesa da sala, começou a dar voltas em torno dela, tirando as cadeiras do lugar tentando me deter, ora de um lado, ora de outro, e eu na aba, ameaçando, ininterruptamente, jogando na descarada o que antes havia endereçado ao gato.

Fazendo mil piruetas, a jovem dava linha à pipa. Pensando com a agilidade do medo de ser apanhada, e, pior, de se ver acuada, de um momento para outro, sempre bolava um jeito de conquistar espaços novos, a ponto de, num repente, eu achar que ela se parecia, em muito com o danado do gato, exceto que o animal não usava sainha curta e nem calçava sandália rasteirinha, o que lhe propiciava uma maneira rápida e eficiente de fugir das minhas investidas.

5
Quando finalmente a confinei, de vez, no banheiro, cuja porta foi aberta inopinadamente, mas sem tempo de ser lacrada por dentro (usei meu pé esquerdo para impedir que se fechasse), grudei-a pelos cabelos, num assomo de cólera irreprimível, enquanto grunhia furioso, o coração a mil por hora:

— Te peguei, desgraçada. Agora darei a você o mesmo tratamento que pretendo dar àquele gato.

Salete parecia assustada. Aliás, parecia não, andava assustadíssima. Estávamos suados igual bêbados jogados em meio a um temporal tenebroso. Literalmente molhados até os ossos. Além da mancha provocada pela correria, se tornara visível, em sua pele, a transpiração por todo o corpo, sem mencionar o cansaço que a deixara quase sem respirar. Mesmo quadro se amoldava à minha pessoa, sem tirar nem pôr.

— Patrão, patrãozinho, por favor, me solta. Deixa eu sair. Estava só brincando. Odeio aquele gato tanto quanto o senhor. Olha, preciso ir para a cozinha preparar o jantar. Daqui a pouco sua esposa e sua filha chegam com a sua neta... e eu ainda nem dei conta de toda a louça sobre a pia...

— Maldita, vagabunda... achou bom tirar sarro da minha cara. Ria agora. Ria sua filha de uma égua.

6
No que eu falava, apertava a garganta da criatura, com a ponta dos dedos, a ponto de sua voz ir perdendo, aos poucos, a tonalidade normal.

— Canta, agora, sua vaca. Canta... atirei o pau no gato... canta... vamos, canta...

Afônica, a goela presa as minhas mãos, Salete não tinha uma rota de fuga. Cantar, nem que houvesse um milagre.

— Canta, vadia, cantaaaaaaaaaaaa...
— Pa... pa... pa... trãaooooo... pe... pe... lo... a... amor... de... de... Deus... – Conseguiu grunhir lancinantemente com um fio de voz. Pondo as mãos em rogativa, suplicou humilde:
— Não me ma... não me ma... mate...

Eu seguia firme, atemorizando, sem dó nem piedade.
— Canta...
E ela, quase a desmaiar.
— A... ati... ati... atire... rei... o gato... opa... pau...
— Canta desgraçada. Canta...

Tomei um safanão certeiro no ouvido, não me lembro, agora, se no direito ou no esquerdo, seguido, todavia, de forte e potente soco diretamente no meio da nuca. Vi estrelas, não só estrelas, vi gatos, e junto, percebi a empregada correndo, chorando, apressada para seu quarto. Ouvi vozes, xingamentos, pressenti minha neta chorando, minha filha gritando. Voltei a ver gatos, gatos brancos, gatos pretos, gatos amarelos, gatos vermelhos... ouvi a Salete cantando “atirei o pau no gato tôtô, mas o gato tôtô, não morreu, reu, reu, dona Chica caca admirou-se se do berrô, do berrô, que o gato deuuuuuuuuuuuu...”. Minha mulher acabara de chegar da rua, com minha filha, minha neta e meu genro, a tiracolo.

7
Explicar a história da Salete no banheiro e as marcas no seu pescoço foi o de menos. Salete queria ir embora. Pediu as contas, chorou, esperneou, me chamou de monstro, desalmado, fez um escarcéu dos diabos. Porém, depois de um veemente pedido de desculpas, resolveu ficar. Afinal, trabalhava com a nossa família, há pelo menos cinco anos. Fazia parte do mobiliário. E todos gostavam dela. Minha mulher, minha filha, meu genro, minha neta. Sabrina ficava mais tempo aos seus cuidados, que colada à mãe ou a meu genro ou à minha esposa. Quando a confusão de ir embora, de vez, se materializou, foi pelo choro da menina que o remorso pesou no coração da moça impedindo que ela virasse as costas de vez e nos deixasse na saudade, a ver navios.

— Tá bem, seu Tomás, dona Verônica, doutor Eurípedes e dona Cinthia. Eu fico. Amo todo mundo, amo essa garotinha linda, nada tenho a reclamar. Perdoo seu Tomás pela brincadeira do gato...

Enfim vida agitada voltando ao normal. Depois da janta servida, passada a novela, Verônica, minha esposa, voltou à carga.

— Agora que tudo está na santa paz, me explica meu caríssimo marido, o tal caso do gato. De onde foi que você, Tomás, me tirou essa sem pé nem cabeça conversa pra boi dormir de um gato que andava aqui pela casa?

8
— Contei, sem tirar nem pôr, como o gato aparecera, na fita. Expliquei uma, duas, dez, vinte vezes. Verônica, cara de riso, não acreditava em nadinha de nada nessa patacoada. Minha filha e o marido, idem. A certa altura, começaram a chover as perguntas.

— Que provas você tem que tudo isso que nos contou é real? — perguntou Eurípedes, meu genro?

— O mais importante, papai — Completou minha filha. — Cadê o gato? Até agora, nem sinal dele.

— O gato está trancado no nosso quarto de hóspedes. Depois de correr no encalço dele igual cão sem dono, consegui encurralar ali o maldito.
— Então ele está lá agora — voltou à carga minha mulher?
— Sim, amor.
— Salete também viu o gato?
— Sim, viu.

Minha mulher gritou Salete, que veio num piscar de olhos.
— Pois não, patroa. Às ordens.
— Sa, o Tomás — continuou minha esposa — disse que o gato, pivô de toda essa encrenca, está no quarto de hóspedes?
— Sim, senhora.

Minha filha pediu um aparte e entrou na conversa trazendo, à tona, nova indagação.
— Sa, você viu esse gato?
— Vi patroinha. Com esses olhos aqui que a terra haverá de comer...
— Como é esse gato? — insistiu meu genro.
— Ora, doutor Eurípedes, é um gato, igual aos outros. Tem pelos e bigodes grandes, uma lista branca no meio da barriga...
— Eu sei. Mas exatamente, como é o gato — insistiu minha filha — Preto, branco, malhado?
— Ah. Tá. É Branco. Tem uma lista branca na barriga.
— Gato branco com lista branca. Sa, pelo amor de Deus...

— Salete entenda. O que estamos querendo saber — obtemperou meu genro — é se esse gato é pequeno, grande ou de médio porte?
— Como assim, doutor Eurípedes?
— De que tamanho é o gato?
— Do tamanho de um gato normal, eu já disse.

— E ele miava ou latia?
— Acho que os dois, dona Cinthia.
Caímos na gargalhada após ouvir essa resposta.
— Pai, mãe, Eurípedes, o caso é sério. Sa, o gato latia ou miava?
— Miava, dona Cinthia.
— Então, ele não latia?

— A senhora dona patroinha está me confundindo todinha.
— Sa, os gatos, miam. Os cachorros latem. Ponto pacífico. Essa é a ordem natural das coisas.
— Tá. Ele miava. Miauuu... miauuu... miauuu...
— Ok. Estamos fazendo progressos. Agora me diga Sa. Qual a cor do gato? Branco com uma lista preta na barriga ou preto com uma lista branca no baixo ventre?
— Meu Deus, dona Verônica, Patroinha, doutor Eurípedes, não lembro...

— Como não lembra? Vocês dois não andavam as turras com esse gato?
— Sim...
— E você não sabe precisar a cor?
— É branca, dona Verônica.
— Branca com uma lista preta na barriga?
— Isso mesmo. Foi como à senhora falou.
— E onde ele está agora?
— Ele quem, dona Verônica.
— O gato, Salete.
— Seu Tomás prendeu no quarto de hóspedes.

9
— Você tem certeza disso?
— Sim, senhora.
— Cadê a chave do quarto?
— Está com seu Tomás. Vi quando ele pôs a chave no bolso.
— Pai, a chave. Vamos averiguar e acabar logo com isso. Amanhã precisarei sair cedo. Terei um dia longo e cansativo.

— Eu idem — arrebatou minha mulher. — Vamos ao quarto de hóspedes.
Deixamos minha neta Sabrina com meu genro e, em seguida, marchamos, em fila indiana, compenetrados e silenciosos, em direção ao cômodo que salvaria a todos e a mim, principalmente, daquela situação embaraçosa. Minha filha meteu a chave, escancarou a porta. Nessa altura, meu coração apertado, parecia prestes a explodir. 

10
Alguns longos segundos se passam. Nem sinal do maldito. Entrementes, no lugar dele, passou por nós, aos tropeços, aturdida e assustadíssima, uma baita ratazana. A debandada da galera se generalizou. Cada um correu para um lado, aos empurrões e aos berros, como se fugissem de um fantasma inesperado surgido de lugar nenhum.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Fortaleza, no Ceará. 12-4-2017

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