Haroldo P. Barboza
(4º lugar no Prata da Casa 97 - Petrobras)
Etelvina ficou viúva aos 68
anos. O falecido, enterrado num sábado de carnaval quente e muito ensolarado,
lhe deixou a “quitinete” quitado e uma frágil e nada invejável pensão de R$
400,00. Não poderia recorrer ao auxílio de irmãos nem filhos, pois o único que
tiveram, faleceu na Austrália há cinco anos. Sua parente (sovina como um pato
famoso) mais próxima era a sobrinha Geodalva, que lhe havia convidado para
morar na meia-lua no quintal de sua mansão de Teresópolis, em troca de um pequeno
aluguel de R$ 200,00 (fora as refeições e o uso do banheiro da empregada).
- Ela que vá roubar o capeta -
disse Etelvina ao seu zíper (pois não haviam botões em sua blusa
remendada).
A síndica do prédio, Zuleika, xereta
de primeira linha, desde maio não conseguia atinar como o padrão de vida da
viúva havia melhorado de forma tão rápida. Acabou sabendo pelo seu marido
(caixa do banco onde Etelvina possuía sua conta há doze anos), que a vizinha
estava efetuando depósitos mensais na faixa de R$ 250,00! Em grana viva. Para tentar descobrir
rapidamente a nova fonte de renda da viúva, mapeou todos seus movimentos por
três semanas consecutivas. Quase uma
detetive.
De segunda a sexta-feira, saía
do prédio às 17h00 e retornava às 23h00. Aos sábados, saía às 9h00. E regularmente, aos domingos, saía desfilando
de roupa nova, de táxi, quase que humilhando os habitantes do conjunto
residencial de Vila Silêncio. Teria arranjado algum abastado amante, mesmo com
aquela pele toda enrugada? Estaria fazendo bico como apontadora do jogo do
bicho, apesar de não enxergar a um palmo do nariz? Seria uma simples arrumadeira de motel,
apesar da fama de carola? Estaria chefiando uma perigosa e lucrativa quadrilha
de pivetes? Estas dúvidas estavam acabando com as mal pintadas e sujas unhas de
Zuleika. Era preciso colocar o mistério em pratos limpos o quanto antes!
Naquele último sábado de outubro, Zuleika a seguiu junto com a chuva miúda. Entraram no hiper a cinco quadras do condomínio onde moravam. Etelvina fez o trajeto da caixa 1 até à caixa 36 por seis vezes, como se estivesse escolhendo um incauto para suprimir sua carteira. De repente, ela se encostou numa mulher que empurrava um carrinho lotado com um braço e equilibrava uma criança de seis meses no outro. Ela era a oitava da fila sinuosa da caixa 19. Zuleika suspendeu a gola da capa e aproximou-se para ouvir o diálogo.
- ... como hoje está lotado,
cobro R$ 5,00 para levá-la até à caixa reservada aos idosos. Você dirá que é
minha "filha". Em menos de dez minutos você estará fora deste sufoco,
pois eu ensaco tudo com rapidez e segurança. São seis meses de prática!
- Mas a funcionária da caixa
não desconfia de lhe ver vinte ou trinta vezes, cada vez com uma “filha”
diferente?
- Claro que não! Ela está no “esquema” e recebe
20 % do que arrecado por dia. Embarcamos no exemplo que vem de Brasília!
Título e Texto: Haroldo P. Barboza, 1997
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Contos moucos dos loucos (XXXII) – História de pescador
Contos moucos dos loucos (XXXI) – Belo adormecido
Contos moucos dos loucos (XXXI) – Belo adormecido
Texto bastante inteligente.Parabens à Haroldo Barbosa. Aparecido Raimundo de Souza.
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