Ângela Marques
Quando eu a vi, de carrinho cheio e cheia de pressas, abrandei o passo:
não tinha urgência em pagar as toalhitas de marca branca que levava nas mãos e
tive o pressentimento de que estava perante um cinturão negro das filas de
hipermercado. Em dois minutos, o cesto dela confirmou o meu sexto-sentido –
lançado por cima da minha cabeça para cima do tapete rolante, ele era o rei
daquela selva.
Só que é Natal e no Natal a
lei da selva não ganha nem à lei da bala. “Podem passar a esta caixa, por
favor, pela mesma ordem”, ouvi. Ouvi eu, ouviu ela, ouvimos todos, só Deus não
ouviu ou teria impedido aquilo que aconteceu a seguir. Ao sinal de nova caixa
aberta, caíram chuvas e trovões: eu encolhi-me, ela girou como o diabo da
Tasmânia versão Looney Tunes, eles correram como se isso lhes devolvesse a
alegria e os duodécimos, tudo de uma vez e com juros. Tive a certeza: o mundo
ia acabar comigo a tentar comprar toalhitas – e por esta é que eu não esperava.
A recompor-me da passagem do
tornado Taz, vi-a avançar para a outra caixa, para logo recuar, deslocada,
incrédula e revoltada – sobretudo revoltada. Fisgando um grupo que já espalhava
as suas compras pelo tapete vazio, ela não falou, expeliu o que sentia: “Que
falta de civismo. Que falta de civismo. Que falta de... civismo!”
Voltando à fila de partida,
tirou-me do jogo com uma carga de ombro e continuou, já para a bancada: “Que
falta de civismo. Só neste país.”
Tive vontade de a abraçar.
Tive vontade de a acalmar e de lhe dizer que, não, o que faz falta a este país
não é um novo Salazar. Tive vontade de abraçar porque a luta que ela ali tinha
travado é de todos. É que, sim, os fura-filas andam aí – ela, por exemplo,
tinha acabado de se transformar numa.
Título e Texto: Ângela
Marques, Revista Sábado, nº 711, de 14 a 20 de dezembro de 2017
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Baseado neste rico relato, vou editar (assim que Jim tiver um tempo) um conto ("A filha na fila") que criei antes de 2000 (quando ainda havia uma réstia de civismo).
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