Helena Matos
A ideologia tornou-se biologia. O comunista
hoje é o ativista. Luta das comunidades em vez de luta de classes. Por isso o
dirigente homossexual do CDS é como o preto de cabeleira loura: não é natural
Um preto de cabeleira loura,
um branco de carapinha ou um homossexual no CDS não é natural. Natural é o
homossexual ser do Bloco de Esquerda. Ou pelo menos de esquerda. Quando, a
propósito de Adolfo Mesquita Nunes, Fernando Rosas declarou “O CDS até tem um
dirigente gay! Ai que moderno que ele é!” exprimiu com notório mau gosto, mas
com muita clareza a instrumentalização ideológica subjacente a essas entidades
que agora por aí pululam – as comunidades – e ao discurso comunitarista.
Foto: Miguel Silva |
Por todas estas comunidades
falam uns alegados representantes cuja importância decorre não do reconhecimento
que têm entre aqueles que dizem representar, mas sim do eco conseguido pelas
suas declarações. Estas invariavelmente reproduzem, devidamente adaptadas às
suas particulares e físicas circunstâncias, a cartilha marxista leninista. Onde
antes estava a condição de classe está agora a pertença a uma ou várias
comunidades.
Na luta contra o modo de vida
ocidental, a comunidade substituiu o proletariado. Este último não só perdeu o
préstimo político como até desatou a votar em que não devia. Consequentemente
as suas filhas podem ser violadas, abusadas, prostituídas e em alguns casos
assassinadas perante o silêncio das autoridades como aconteceu em Rotherham e Telford,
Inglaterra.
Como foi possível que entre
1980 e 2012 grupos de homens sequestrassem, drogassem, espancassem, violassem…
milhares de meninas e adolescentes, em Inglaterra? Muitas das vítimas estavam
sob alçada dos serviços sociais mas quando se queixavam à polícia
e aos serviços sociais ninguém as tomava a sério. Muito menos se registava a
identidade dos agressores e escamoteavam-se os dados que mostravam a existência
de redes de pedofilia. Tudo isto foi possível porque as vítimas eram a
chamada “easy meat”: raparigas brancas provenientes de meios
pobres. Mas não só. Isto foi possível porque os agressores
pertenciam a uma das comunidades que substituiu o operariado no organograma
instrumental da esquerda: muçulmanos originários, eles mesmos ou as suas
famílias, de países como o Paquistão e o Bangladesh. E assim a maior
preocupação das autoridades não era proteger as crianças, mas sim protegerem-se
a si mesmas das temidas acusações de racismo, que inevitavelmente surgiriam do
mundo do ativismo quando se revelasse a identidade dos agressores. Logo não
podiam admitir qualquer referência étnica aos violadores.
Quando alguns técnicos como
foi o caso de Jayne Senior começaram a tomar a sério as denúncias e a produzir
relatórios em que não só incluíam as agressões relatadas pelas jovens, mas
também dados sobre a identidade e o funcionamento em rede dos seus agressores
constataram que ninguém lia essa documentação. Pior, muita dessa informação foi
destruída, apagada e alterada como aconteceu aos dossiers produzidos pela
advogada Adele Weir cujo trabalho de denúncia lhe valeu uma tenaz perseguição
por parte dos serviços sociais e a inscrição num curso sobre diferenças
étnicas. Em resumo, o absurdo tornou-se a regra.
À medida que o comunitarismo
avança o mundo torna-se de facto um labirinto de paradoxos grotescos. Enquanto
o socialismo e o comunismo geraram a miséria e a opressão, o comunitarismo está
a tornar a nossa vida uma corrida entre absurdos: em França, forças sindicais
da área da educação, o SUD-Education 93, em nome do combate ao racismo, organizam ateliers interditos a brancos e acusam de fascismo aqueles que
denunciam essa clara discriminação; em Madrid, o bairro de Lavapiés viveu horas de motim quando vários vendedores
ambulantes (“manteros”) de origem senegalesa devidamente instigados por ativistas
vários atacaram a polícia porque estavam convictos de que o vendedor
ambulante Mame Mbaye morrera a fugir à polícia.
Na verdade Mame Mbaye sofreu um ataque cardíaco e os polícias
foram os primeiros a socorrê-lo. Mas quando tal se soube já era tarde: os
indignados da comunidade “mantera” tinham destruído lojas e parques para
bicicletas, incendiado caixotes… Como não podia deixar de ser, os líderes do
Podemos acusaram a polícia e pediram a legalização dos “manteros”. Já os
residentes de Lavapiés que outrora eram alvo da solidariedade marxista agora
pedem sim o apoio da polícia.
Em Portugal, o PCP ainda
aposta no controlo do indivíduo-trabalhador: aquilo a que entre nós se chama
defesa dos direitos dos trabalhadores mais não é do que o retirar de poder a
cada trabalhador e às suas comissões para, por exemplo, negociarem bancos de
horas. Mesmo que patrões e trabalhadores estejam de acordo não podem decidir
nada porque tudo depende daquilo que os sindicatos decidem na contratação coletiva.
Mas é óbvio que o comunitarismo e a respectiva indústria da vitimologia e dos
respectivos pedidos de indemnização por discriminação, sem esquecer o
revisionismo histórico, estão em franco crescimento. (Confesso que aguardo com
curiosidade o alcance desse revisionismo nomeadamente na sua vertente feminista
e no que respeita ao machismo de alguns líderes.)
Algures no estrépito da queda
do Muro de Berlim e do falhanço óbvio do comunismo como utopia realizável, a
ideologia tornou-se biologia e o comunista deu lugar ao ativista. A troca
revela-se proveitosa pois não só garante financiamento a rodos através duma
nada escrutinada rede de apoios, funcionários, associações, comissões, grupos…
como permite manter uma influência que não é afetada pelos resultados
eleitorais pois está indexada ao estardalhaço conseguido nos noticiários.
Herdeira da luta de classes aí
está a luta das comunidades capitaneada pelos mesmos que já quiseram
dirigir o proletariado. Não por acaso os ditos representantes e os mediadores
cumprem muito frequentemente o papel outrora reservado aos controleiros:
detectam os desvios agora não à linha justa, mas sim à tradição ou à lei
particular da comunidade.
Como sempre acontece no marxismo-leninismo,
o que cada um pensa, sente ou escolhe não conta nem pode contar. Não há lugar
para o indivíduo, mas sim para os membros das comunidades. E a comunidade pensa
em bloco, vota em bloco (e o Bloco espera que no Bloco). Não cumprir este
destino em que biologia e ideologia se cruzam num pesadelo determinista é
tornar-se por assim dizer num erro da Natureza (devida e muito biologicamente maiusculizada)
e num traidor agora não de classe, mas sim da respectiva comunidade.
Por isso o dirigente
homossexual do CDS é visto como o preto de cabeleira loura do velho anúncio:
não é natural.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
25-3-2018
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