Prevalecem discursos de ódio e a exploração
política descarada do assassinato de Marielle
Fernando Gabeira
A morte de Marielle Franco e 60 mil mortes estúpidas registradas anualmente no Brasil deveriam unir-nos. Ou, pelo menos, nos aproximar. Mas não é isso que acontece no momento. Prevalecem discursos de ódio e a exploração política mais descarada.
Até autoridades engrossam o coro
dos que tentam reescrever a história da vereadora, atribuindo-lhe um passado
inexistente. O PT afirma que a morte de Marielle e a pena de Lula são faces de
uma mesma moeda. Dilma a considera uma parte do golpe.
A sensação de emergência com
que vejo o problema da segurança pública no Rio às vezes me faz sonhar
romanticamente com uma solução parecida com a que demos ao surto de febre
amarela. Havia um problema, definiu-se a saída – vacinação – e as pessoas foram
aos postos saúde. Nas filas, ninguém gritando “fora Temer”.
Era um tipo de problema que
precisava ser enfrentado, não importa quem estivesse lá em cima. Restou apenas
uma pequena minoria contra vacinas que defendeu suas ideias na rede,
democraticamente, sem agressividade.
É impossível transplantar esse
comportamento para a segurança pública. As saídas são mais complexas. E há um
pesado clima político-ideológico em torno delas.
No entanto, não creio que o
Brasil se resuma ao debate ensandecido, com tanta gente zangada e os robôs
incendiando a discussão. Existe um espaço racional de conversa, sobretudo para
um tema tão atacado pela esquerda e pela própria Marielle: a intervenção
federal na segurança do Rio.
O primeiro desafio é desvendar
o crime. Houve um debate inicial sobre federalizar ou não as investigações.
Temo que isso nos leve aos impasses de quando surgiu a dengue: estadual ou
federal?
A hipótese indicada, creio, é
reunir o que há de melhor tanto na polícia do Rio quanto nos quadros federais.
Mesmo porque a polícia do Rio tem experiência no campo.
Todavia é razoável desconfiar
da possibilidade de um trabalho isolado. Mas não deixa de ser uma contradição
aparente: combater a intervenção federal e duvidar da capacidade da polícia. Os
que o fazem desprezam a desconfiança que grande parte dos cariocas tem na
capacidade da polícia de deter sozinha o avanço da ocupação armada.
Usei a expressão aparente
contradição porque cabe argumentar que uma coisa é a investigação
técnico-científica e outra, a crítica à presença do Exército nas favelas do Rio.
O argumento dos defensores dos
pobres, às vezes sem consultar realmente os pobres, é de que a presença do
Exército traz ameaças aos direitos humanos. Mas a presença de um Exército que
cumpre as leis, que tem regras de engajamento transparentes, não pode ser
comparada à presença de traficantes com fuzis ou milicianos armados.
Entre um Exército ostentando a
bandeira do Brasil e outro exército, de boné e sandálias, mas com modernos
fuzis, parece existir uma hesitação. Como explicar isso?
De um lado, a dificuldade de
compreender que os anos passaram e o Exército Brasileiro está comprometido com
a democracia. De outro está a romantização dos bandidos. Não me refiro apenas
às conversas em torno do chope nos botequins da vida. Nem à simples
interpretação vulgar do marxismo. Essa romantização está presente em textos de
eruditos de esquerda, como o historiador Eric Hobsbawn. Ele via o banditismo
como reação a certas condições sociais. Apesar de brilhante, interpretava o
mundo apenas com os olhos do marxismo.
No cenário cultural
brasileiro, discutiu-se muito a frase de Hélio Oiticica “seja marginal, seja
herói”, como um exemplo disso. Nesse caso específico, entretanto, creio que
Oiticica falava do criador e sua relação com o mercado de artes plásticas.
O argumento dos opositores da
presença militar é o de que os favelados são incomodados pelo Exército. A
verdade é que, às vezes, são estuprados por traficantes, achacados pelas
milícias, que vendem de tudo, do gás ao acesso à televisão fechada. E não há
espaço para a sociedade monitorá-los amplamente, como o faz com o Exército.
Um dos argumentos do PSOL é
que a intervenção não é necessária. Talvez ele se apoie nos índices de
homicídios mais altos, como os do Ceará e de outros Estados do Nordeste, por
exemplo. Mas não enfrenta a questão específica do Rio: a ocupação armada. Como
resolvê-la?
A resposta, nesse caso,
costuma estar na ponta da língua: educação, saúde, saneamento, cultura. Mas
como chegar lá com isso tudo?
A presença dos militares em si
também não resolve o problema de fundo. Mas abre caminho para que a polícia
estadual se recupere e tente reduzir a mancha territorial ocupada.
Alguns traficantes toleram o
trabalho político em suas áreas. No caso da Vila Cruzeiro, do Complexo do
Alemão, liberavam algumas ruas para o corpo a corpo eleitoral. Mas isso são
concessões, migalhas de liberdade, pois não só o governo, como todos os
candidatos devem ter acesso irrestrito a todos os pontos da cidade.
Às vezes, alguns mais
exaltados nos dão a impressão de que, se a favela de repente tivesse segurança
e todos os serviços básicos assegurados, seu discurso cairia no vazio, não
saberiam mais para onde apontar a luta. Quando Temer decretou a intervenção na
segurança, Bolsonaro disse que estava roubando sua bandeira.
Todos sabemos que Temer não se
preocupa senão com a própria sorte e a do seu bando, já dizimado pela Lava
Jato. Se a intervenção conseguir equilibrar as forças no Rio e contribuir para
o longo processo de libertação de parte do território, muitas bandeiras podem
ser roubadas também.
Não há nada a temer. Outras
virão. Uma delas, congelada há algum tempo, são os escritórios de arquitetura
destinados a orientar construções e reformas. Beleza, funcionalidade e
conforto, de alguma forma, podem ser acrescentados aos morros pacificados.
Título, Imagem e Texto: Fernando Gabeira, Estado de S. Paulo, 23-3-2018
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