Alberto Gonçalves
Dado que Marielle Franco partilhava uma
religião que se limita a considerar a vida dos fiéis e a desprezar as vidas
restantes, o barulho seletivo e sonso em volta da sua morte é inteiramente
adequado
Há dias, o homicídio de uma
vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, causou particular consternação em
Portugal. Da indignação nas ponderadas “redes sociais” a votos de pesar no
parlamento, o assunto dominou a atualidade durante os dois ou três dias da
praxe. Porquê? O que distinguia uma vítima de quem, suponho, 99,95 dos
portugueses nunca ouvira falar?
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Captura de tela matéria no G1 |
Não foi o facto de ser brasileira. Em termos quantitativos, o Brasil é, com impecável avanço, o país com mais assassínios no mundo, e o décimo quarto qualitativamente. A cada ano, mais de 60 mil pessoas são por lá mortas a tiro ou métodos alternativos, sendo o Rio um lugar bastante prolífico na matéria. A circunstância de o Brasil possuir, desde o sr. Lula, uma legislação altamente restritiva no que respeita à posse de armas de fogo é apenas um pormenor, decerto irrelevante. Relevante é a habitual ausência de comoção deste lado do Atlântico.
Não foi o facto de o crime ter
tido uma provável motivação política. Na vizinha Venezuela, são frequentes as
matanças por razões “ideológicas”, com ou sem aspas, e nenhuma comove os
portugueses “oficiais”. Mesmo no Brasil, e mesmo no universo da política
municipal, só em 2017 foram abatidos perto de quarenta autarcas, de filiações
diversas e por motivos sortidos. Nem um suscitou a atenção da Assembleia da
República.
Não foi o facto de a dona
Marielle ser “favelada”, impostura repetida nos obituários e desajustada a uma
cidadã que trepou pela escada social e pela política. Além disso, “favelados” a
sério são alvos preferenciais da cultura de violência predominante no Brasil e
não consta que estimulem vigílias em Lisboa.
Não foi o facto de a dona
Marielle ser, conforme lembraram os “media” com curioso frémito, “mulher, negra
e lésbica”. Entre as resmas de cadáveres baleados ou esfaqueados no Brasil, é
estatisticamente impossível não haver milhares pertencentes a mulheres, muitas
delas negras, algumas lésbicas, cujo triste fim não mereceu lamentos de
cançonetistas e homenagem de deputados. Além disso, seria grotesco que, nestes
“inclusivos” tempos, o género, a “raça” ou a orientação sexual influenciassem a
piedade ou a indiferença das massas.
Não, senhor. O homicídio da
dona Marielle provocou rebuliço porque a senhora era “ativista”, suave código
para “comunista” e autorização, ou ordem, para luto carregado. Uns mandam e,
por convicção, medo, contágio ou perturbação, os demais obedecem. Tivessem as
balas atingido um democrata comum, dos que prezam a liberdade e ninharias
afins, o caso passaria à obscuridade com discrição e a ajuda de dois terços da
AR: a unanimidade fúnebre abençoa unicamente os que combatem injustiças
discutíveis em prol de injustiças inomináveis. Absurdo? Nada. Dado que Marielle
Franco partilhava uma religião que se limita a considerar a vida dos fiéis, e a
desprezar as vidas restantes, o barulho seletivo e sonso em volta da sua morte
é inteiramente adequado.
Notas de rodapé:
1. Depois do
ministro das Finanças, soube-se que o dr. Costa também pediu bilhetes para a
bola. Em paragens menos folclóricas, o pedido seguinte seria o de desculpas, e
talvez o de demissão. Por cá, é uma tradição respeitável, um pretexto para
gracejos no parlamento, um pormenor imune a juízos de valor, uma simples
pincelada na vasta aquarela da portugalidade. O mistério nem é tanto o sermos
governados por burgessos, ou os burgessos se divertirem à nossa custa. O
mistério é nós gostarmos.
2. É como a
história do sujeito que faleceu com um resfriado agravado pelo camião que lhe
passou por cima. Já sabíamos que os incêndios do ano passado haviam sido
provocados por um raio despropositado, eucaliptos imaginários, a perfeita
“tempestade de fogo” (?), alterações climáticas, agiotas da madeira, o sr.
Trump, a incúria das populações, maluquinhos da aldeia, o governo de Passos
Coelho, a ausência de cabras “sapadoras”, a seca, a desdita, etc. Soube-se
agora de uma insignificância que é capaz de ter qualquer coisa a ver com o
assunto: entre março e outubro, o governo recusou total ou parcialmente sete
avisos da Proteção Civil para a necessidade de mais bombeiros e aviões no
terreno. No meio destas curiosas desavenças burocráticas morreram cento e tal
pessoas, fora trocos materiais. Das que sobreviveram, e a julgar pelas
sondagens, uma boa parte continua a apoiar o PS, e outra parte rechonchuda
apoia as seitas que apoiam o PS (PSD “moderado” incluído). São livres disso.
Não se livram é de confundirmos os lamentos pela tragédia com um cinismo cruel
e até um bocadinho demente.
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Foto: Miguel Silva |
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
24-3-2018
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