Maria João Marques
É delicioso ver como para certa esquerda
viver nos subúrbios (esses bairros de lata ou sucedâneos) é bom para a arraia
miúda, a intelectualidade tem de viver nas zonas históricas (com rendas
baratas).
Lisboa, Largo do Camões, foto: Jim Pereira |
Houve manifestação contra a
carnificina e tudo, com grande apoio do BE. O vereador Ricardo Robles
participou. Tinha ‘riot’ no nome – na verdade é assunto para levar qualquer um
a pegar em armas. Inteligentemente (aspas) escolheram protestar na Almirante
Reis, avenida que tudo aquilo que repugna a esta boa malta reanimou de coma
profundo.
(De seguida vou
aludir a alguns casos descritos na reportagem, pelo que, caso o leitor esteja
desconhecedor do seu conteúdo, sugiro que vá buscar meia tablete de
ansiolíticos para acompanhar a leitura da galeria de horrores. É bem provável
que necessite de lhe dar uso.)
Veja bem o leitor. Um homem,
por causa do fim do seu arrendamento anterior, teve de mudar de casa do
Saldanha para os Olivais. Do Saldanha para os Olivais. Quem sobrevive a
semelhante provação? Imaginam o balúrdio em psicoterapia que esta pessoa,
compreensivelmente traumatizada, irá gastar para o resto da sua vida?
Ana Benavente, senhora importante
que até fez parte de um governo socialista, também viu o arrendamento da sua
casa terminado. E não é que teve de mudar para uma casa, ok, ok, bem arranjada,
mas que não é casa de ricos? Só um sub-humano tolera viver bem no centro de
Lisboa por mil euros numa casa de classe média. E os mafarricos dos senhorios
que pedem informações para garantir que os inquilinos têm capacidade de pagar
as rendas? Que ganância. Como se não tivessem obrigação de disponibilizar a sua
propriedade gratuitamente.
Mais um caso. Uma família que
morou no Chiado a pagar 600€ até há pouco foi morar para Campo de Ourique (zona
nobre e central) a pagar 800€. (Já desmaiou?)
Bom, fico por aqui. Temo pela
saúde dos meus leitores. Em todo o caso, penso que todos concordamos que estas
situações são gravíssimas. Muito mais graves, por exemplo, que a incúria e
incompetência grosseira da resposta do governo aos fogos florestais do ano
passado, com o bonito número de 112 mortos, cujo último relatório o DN tão
suavemente noticiou.
Percebe-se. Qualquer jornal
tem direito a escolher entre reportar e destacar as carnificinas verdadeiras ou
as carnificinas inventadas.
É tudo tão ridículo que nem se
sabe se os ativistas de esquerda têm vontade deliberada de fazer figuras
apalhaçadas. Talvez para desviar a atenção (à conta de tanta gargalhada) do
(des)governo, com o justificado sururu do relatório dos fogos de outubro ou o
alinhamento tácito com Putin contra as decisões da UE e do nosso mais antigo
aliado. Ou se é a tradicional aldrabice bloquista e para-bloquista de empolar
um meio problema, apresentando-o como quase crise de regime, para assim esmagar
mais a livre iniciativa e os rendimentos de muitas famílias que contam com as
rendas para o orçamento mensal – e, sempre, estatizar a sociedade.
Percebo que as pessoas se
afeiçoem às casas e lhes custe sair. Também ninguém gosta de pagar mais pelo
que dantes pagava muito pouco. Mas não espanta que os inimigos da propriedade
privada e da livre iniciativa provoquem chavascal e manifestações por rendas de
menos de mil euros em casas boas em zonas recomendáveis.
Faço só alguns apontamentos.
Primeiro. Que esquerda parvenue e de horizontes
pequenos. Passei boa parte da minha vida a atravessar Lisboa (no extremo norte
da cidade) para ir diariamente para o Lumiar, primeiro para o colégio, depois
para o CUPAV, muitas vezes para ir para casa de amigos ou namorar. Para que
percam todo o respeito por mim, declaro ainda que sempre tive amigos vivendo em
Benfica e Telheiras. Ou (é o descalabro) residentes na Portela de Sacavém,
bairro moda nos anos oitenta, malgrado estar situado já no concelho de Loures.
Lisboa não é sequer uma cidade grande.
Segundo. Aparentemente há quem de esquerda não saiba, mas nos
subúrbios já vive muita gente licenciada, de classe média, que trabalha em
Lisboa, com filhos e horários para cumprir. Alguns preferem. Gostam de ter mais
espaço, casas mais baratas (logo mais dinheiro para férias, por exemplo), menor
rebuliço, proximidade de praia, o que seja.
É delicioso perceber que para
alguma esquerda viver nos subúrbios (todos eles provavelmente bairros de lata
ou sucedâneos) é bom só para a arraia miúda, que a casta superior dos
funcionários público e da alegada intelectualidade tem de viver nas zonas
históricas lisboetas (com obras a cargo do proprietário e rendas baratas,
claro).
Por outro lado, há também
muito quem viva em Lisboa e trabalhe nos concelhos circundantes (eu, por
exemplo, tenho o escritório a vinte e tal quilómetros). Não é nenhum drama.
Terceiro. Foi divertido ver a direita regionalista do twitter
alinhar com este drama indizível alinhavado pela esquerda.
Quarto. As cidades são realidades dinâmicas. É comum as zonas
periféricas tornarem-se interessantes e culturalmente vivas precisamente por,
não estando em voga e sendo mais baratas, viverem um influxo de sangue novo das
pessoas à procura de rendas mais baixas. Em seguida valorizam.
Quinto. E termino. Este clamor com as rendas caras em Lisboa é um
retrato da nossa esquerda. Paroquial – uma cidade pequena como Lisboa é
demasiado grande para eles. Sem recursos psicológicos para responder às
realidades mais simples da vida – ter de se deslocar uns tantos quilómetros é
uma provação debilitante. Alienada da realidade – não sabe que há vida além do
centro mais curto de Lisboa. Imobilista e reacionária – as dinâmicas de mudança
deixam-nos apavorados e congeminam sobretudo para suprimi-las. Explica muita
coisa.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
28-3-3028
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