Alberto Gonçalves
O problema maior é a crença generalizada de
que a universidade – a exata universidade que aceita sumidades como o dr. Vale
de Almeida – é um abrigo de inquestionável erudição. E de “prestígio”.
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Miguel Vale de Almeida: “Temos
condições para implodir as categorias de género e sexualidade”. Foto daqui.
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Passei os últimos três anos do
curso no café vizinho, a trocar impressões, livros e cassetes. Ao longe, no
interior de um barracão lindíssimo, decorriam preleções fascinantes em redor de
trabalhos com as palavras “subsídios” ou “contributos” no subtítulo. À
aproximação dos exames, eu folheava anotações alheias e fotocópias de maoístas
parisienses, despejava o entulho nos testes e, menos devido à inteligência
própria do que à boçalidade daquilo, obtinha uma nota distinta. Um magnífico
dia, o suplício acabou. O vetusto barracão emitiu um diploma em pergaminho a
declarar-me licenciado. Por mim, nunca levantei o diploma e jurei, embora não
fosse preciso, que a experiência académica terminaria ali.
É verdade que a minha
“formação” (digamos) aconteceu em sociologia, matéria propensa ao burlesco. Nos
anos seguintes, porém, aprendi (a aprendizagem é um processo) que, por incrível
que pareça (e parece), há pior. Não desejo a ninguém o contato direto com a
realidade: um passeio pelos sites dos “estabelecimentos” disponíveis, com
consulta dos cursos disponíveis, dos programas disponíveis e dos docentes
disponíveis, é suficiente para esclarecer os incautos. Se os incautos
insistirem, eles que se inscrevam em certas coisas que há por aí.
Não valeria a pena dar
exemplos. Mas dou um. Nas últimas semanas, causou escândalo a notícia de que
Pedro Passos Coelho iria providenciar lições num tal Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP). As patrulhas
ideológicas, sob a forma dos professores que subscreveram um protesto alusivo,
correram logo a chamar a atenção para a falta de credenciações do
ex-primeiro-ministro. Conseguiram chamar a atenção para a falta de juízo de
quem confunde educação com o evangelismo das “causas”. Na tentativa de
denunciar uma hipotética fraude, recordaram a fraude real a que, com as
excepções da praxe (sem trocadilho), se chama “ensino superior”.
Dos indignados, o mais
“público” é talvez o deputado, ou antigo deputado, socialista Miguel Vale de
Almeida. Dos estudos que publicou, destaco “Ser, mas não ser, eis a questão. O
problema persistente do essencialismo estratégico”; “A teoria queer e a
contestação da categoria ‘género’” e “O esperma sagrado: algumas ambiguidades
da homoparentalidade em contextos euro-americanos contemporâneos”. Cito um
resumo do último, escarrapachado na página “Ciência-IUL – A excelência da
investigação e ciência no ISCTE”: “Igualmete (sic), quanto menos provisâo (sic)
legal exista, menos parece haver una cultura de como fazer e proceder em
situaçoes (sic) de disputa de paternidade entre gays e lésbicas, assistindo-se
ao recurso ou à normativade (sic) legal, ou à normatividade moral (e
necessariamente heteronormativa (sic), androcêntrica e patrilinear) a ela
associada.” Concedo uma pausa para o aplauso da forma e do conteúdo. E depois
um minuto de silêncio para evocarmos o abaixo-assinado e refletirmos na
“dignidade dos profissionais da ciência e do ensino”.
O problema não é o dr. Vale de
Almeida achar que Pedro Passos Coelho não serve para leccionar na universidade.
O problema é o dr. Vale de Almeida achar que o dr. Vale de Almeida serve. Outro
problema é a universidade concordar. E o problema maior é a crença generalizada
de que a universidade – a exata universidade que aceita sumidades como o dr.
Vale de Almeida – é um abrigo de inquestionável erudição. E de “prestígio”.
Pela parte que me toca, só não escondo que frequentei semelhante antro na
medida em que seria ridículo, e provavelmente escusado. Mesmo assim, inúmeros
compatriotas ostentam as habilitações com orgulho. E uma razoável quantidade
finge habilitações com empenho.
Já é rotina. De vez em quando,
destapa-se um político que, a bem do gabarito, falsificou o currículo. Esta
semana, o destapado foi um Feliciano Barreiras Duarte, pelos vistos o novíssimo
secretário-geral do PSD. Evito os detalhes, entretanto divulgados com
abundância, e noto apenas que, em lugar de inventar uma licenciatura, o prof.
dr. Feliciano optou por inventar um emprego numa universidade californiana, a
de Berkeley. Ah, Berkeley… também andei por lá – durante dez minutos, perdido
após escolher a saída errada para o aeroporto de São Francisco. Ao que consta,
o prof. dr. arq. Feliciano nem isso: as suas conexões à instituição
especializada em censurar oradores pró-Trump são meramente platónicas, o
bastante para definir um carácter e, em Portugal, uma carreira.
Repleta de maluquices (“…tem
21 livros publicados, prefaciou vários trabalhos de investigação, foi
conferencista e moderador em 164 conferências, seminários e afins, publicou
cerca de 750 artigos e crônicas em jornais e revistas, e tem variadas
intervenções no plano profissional, extraprofissional, publica, política e de
outras tipologias”), dadaísmo (“…a elaboração deste relatório, com os fins e objetivos
anteriormente referidos, pretende-se que seja consabido, o relacionamento entre
a primeira e a segunda parte do mesmo, com a evidência principal, que de entre
a multiplicidade do currículo do seu autor, poderá sobressair e outrossim
destacar, o fio condutor de que…”) e desafios à língua (ver acima), a
“Conclusão” da tese de mestrado do prof. dr. arq. juiz Feliciano, avaliada com
18 valores pela ex-ministra dos incêndios,
é um regalo.
A moral da história é que, com
frequência, um percurso académico simulado não produz resultados muito
diferentes dos percursos académicos autênticos. Sobretudo no vago universo das
“humanidades”, onde a distância da trafulhice à pertinência é subtil, não há
escassez de vultos incapazes de amanhar uma redacção da “primária”.
Curiosamente, essas limitações não suscitam engulhos até ao momento em que o
vulto saltita para a política, por acaso das raras áreas do saber que não
carece de saber nenhum. Quem a sabe toda é o bastonário da Ordem dos Médicos,
que há tempos, por vergonha, pediu alternativas ao tratamento por “dr.”. O
homem tem a mania e tem razão.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
17-3-2018
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