Paulo Tunhas
O ódio a Passos radica na sua energia,
abnegação e estoicismo que surpreendeu muito boa gente – como eu, que mudei a
opinião que dele tinha –, e que lhe permitiram controlar e dominar a bancarrota.
O comum das pessoas decide-se
politicamente muitas vezes em função dos indivíduos que estão à frente dos
partidos e não dos partidos propriamente ditos. Conhecer a sério os partidos
implica um saber especializado muito para além da possibilidade (e do
interesse) do cidadão normal. É preciso quase uma ciência de naturalista para
perceber como as coisas lá dentro se passam: como se alimentam os seus membros,
como se cortejam, como se reproduzem, como tratam as crias, e por aí adiante.
Ora, o que num documentário de David Attenborough sobre orcas ou leões pode ser
fascinante, torna-se, em relação aos partidos, de uma chateza monumental.
A ecologia interna do PS ou do
PSD não interessa a ninguém, exceto a quem pretender fixar aí a sua área de
residência. Não é, note-se, uma apologia da indiferença que estou aqui a fazer:
é uma descrição dos factos. Tome-se o atual exemplo dos azares de Rui Rio
(coitado, só lhe falta descobrir-se que a senhora Ana Julia Quezada, a
assassina da criança espanhola, faz parte do seu governo sombra). É aquilo que
supomos da sua personalidade tal como ela pública e politicamente se apresenta
que pode, pelo menos em parte, levar um indivíduo a votar ou não no PSD. Ou,
exemplo sem dúvida mais interessante, tome-se o caso, à sua maneira ainda mais atual,
de Pedro Passos Coelho.
A presente história de
indignação quanto ao convite a Pedro Passos Coelho para dar aulas
universitárias como Professor Catedrático Convidado não é em si muito
interessante – e seria estranho que, vinda de quem vem, e sem querer ofender
ninguém, o fosse. É muito interessante, no entanto, como sintoma de outra
coisa. Mais precisamente: do ódio em relação a Passos Coelho, um ódio que não
escapou a muita gente: em último lugar, creio, a João Miguel Tavares, que, no
Público, sobre a matéria disse, como de costume, palavras acertadas (“O ódio ao professor Passos Coelho”). Mas, como em todas as
paixões, há ódios e ódios. Há ódios cujo objeto é necessário preservar bem vivo
e presente para com ele nos justificarmos e ganharmos ímpeto para a nossa
indignação. Acontece que o ódio a Passos Coelho não é dessa natureza. É exatamente
o contrário. É um ódio que visa, por assim dizer, fazer desaparecer o seu objeto,
apagá-lo da paisagem, torná-lo por inteiro invisível. Quem bem viu isso, creio,
foi João Pereira Coutinho, num artigo da Sábado (“A arte de fazer fitas”). Escreve João Pereira Coutinho: “O
ideal, aliás, seria que Passos Coelho não apenas se retirasse da política, mas
também do País, optando pelo exílio voluntário. Depois, sem o inimigo à vista,
não duvido que muitos eruditos teriam todo o prazer em apagá-lo da
historiografia oficial”.
A questão é: porquê um ódio
assim, não apenas tão intenso como tão aniquilador? Dito de outra maneira:
porque é que Pedro Passos Coelho é, para muita gente, literalmente
insuportável? Por acaso, não me parece que seja particularmente difícil
descobrir a razão de tão formidável atividade espiritual negativa: é por aquilo
que a sua própria existência, sem mais, nos obriga a pensar. E o que é isso? Em
primeiro lugar a situação de bancarrota que ele, com uma energia, uma firmeza,
uma abnegação e um estoicismo que surpreendeu muito boa gente – e que fez muito
boa gente, como a mim, mudar a opinião que dele tinha –, conseguiu controlar e
dominar, permitindo que o País se começasse a sair do pântano onde andava a
espernear. Uma pessoa assim é obviamente insuportável. Para mais, alguém que,
passados quatro anos de sacrifícios sérios impostos aos portugueses e de uma
contestação política organizada nas ruas como raramente se viu, e tendo contra
si um grande número de figuras salientes do seu partido, consegue, contra tudo
e todos, menos contra os portugueses, ganhar de novo as eleições. Alguém assim,
de facto, comporta em si algo de insuportável. A resistência psíquica a Passos
Coelho vem destes dois insuportáveis juntos. Não é possível conviver com eles.
E há, é claro, um terceiro
aspecto. A quem veio a seguir Passos Coelho? A Sócrates, que conduziu o País à
dita bancarrota. Ora Sócrates, essa figura da qual o PS agora nunca fala, era
imagine-se, um primeiro-ministro socialista, de cujo governo, de resto, faziam
parte vários membros, e não dos mais insignificantes, que agora integram o
executivo de António Costa. A extravagante relação de pessoal amnésia que essa
gente mantém em relação às suas atividades passadas com Sócrates (a começar por
António Costa) já por si daria ocasião a um capítulo inteiro de um tratado de
patologia política. Agora a amnésia pública e política, que obviamente dita a
primeira, atinge proporções homéricas. Como se nenhuma continuidade com o
passado existisse, como se nenhuma ligação entre um governo e outro fosse
determinável, empírica ou conceptualmente. Como se, pura e simplesmente, um
certo e longo passado, prenhe de catástrofes futuras, não tivesse tido alguma
vez lugar. Mas, lá está, Passos Coelho, sem quase precisar de dizer nada,
funciona como obstáculo inultrapassável a essa espécie de alucinação negativa
que nos permite não ver o que está em frente aos nossos olhos. Criatura, entre
todas, insuportável.
E a tal insuportável só há, de
facto, uma maneira de o tolerar: negando, sem mais, a sua existência. Para a
paz de muitas almas à esquerda, como para a paz de muitas almas do PSD, a única
solução é decretar a inexistência do personagem. Ele lembra a sua própria
coragem, lembra a humilhação eleitoral do PS e lembra ainda Sócrates, o mais
clamoroso tabu socialista de todos os tempos. Alguém assim não pode existir. E,
como com o mitómano que, face a um mapa onde vê o mágico nome de Samarcanda,
acaba por se convencer que já esteve em Samarcanda, os nossos atuais pastores
não param de proclamar que alguém assim, independentemente de todos os detalhes
empíricos que militam em contrário, não pode ter existido. Dia após dia, é essa
a mensagem: Pedro Passos Coelho nunca existiu. Algum dia, talvez haja
oportunidade, como João Pereira Coutinho conjecturou, de escrever isso com
todas as letras.
É, no entanto, lícito pensar
que uma construção política como a geringonça, que é, sobretudo da parte do PS,
fundada nessa tal alucinação negativa da inexistência de Passos Coelho, não
possa alicerçar-se por um tempo indefinido nesses dúbios fundamentos. O
insuportável – aquilo que nos põe radicalmente em causa e que por isso
procuramos excluir com toda a força do campo do real – acaba infalivelmente por
retornar. Mais do que os partidos, como disse no início, são as pessoas à
frente deles, com provas dadas de coragem e carácter, ou de falta desses
predicados, que verdadeiramente contam. Até porque nos dão a ver a história
como realmente se passou e não sob o modo de silêncios mentirosos. Pedro Passos
Coelho nunca existiu? Digamos antes: Pedro Passos Coelho nunca existiu enquanto
perdurar o trabalhoso embuste em que vivemos. Por mim, aposto que vai existir, e
muito, no futuro.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
15-3-2018
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