quinta-feira, 8 de março de 2018

[Leituras] O Reino do Meio

Trilogia do Lótus, de José Rodrigues dos Santos:

O terceiro é “O Reino do Meio”, que acabei de ler. Adorei!

O Reino do Meio é o título do terceiro romance de uma trilogia que aborda as ideologias do fascismo e do comunismo e os grandes acontecimentos que marcaram as sociedades portuguesa, chinesa, soviética e japonesa.

A guerra rebenta em Espanha e o Japão invade a China. Uma relação extraconjugal nos Açores, o atentado contra Salazar e as intrigas palacianas em Tóquio aproximam o coronel Artur Teixeira do cônsul Satake Fukui na mais imprevisível e perigosa das cidades – a Berlim de Adolf Hitler.

Lian-hua, a chinesa dos olhos azuis, está prometida a um desconhecido quando vê os japoneses entrarem em Pequim e a sua vida se transforma num inferno. O mesmo espetáculo é observado pela russa Nadezhda Skuratova em Xangai, onde se apaixona por um português que a forçará a uma escolha impossível.

Amor, dor e ódio no Reino do Meio.

A Berlim do blackout, dos boatos e das anedotas, do Hotel Adlon, das suásticas que brilham à noite e das lojas vazias com vitrinas cheias; a Pequim das mei po casamenteiras, dos chi pao de seda, dos cules e dos riquexós; a Tóquio do Hotel Imperial, dos golpes no Kantei, do zen e dos códigos de honra giri e ôn; e a Xangai da Concessão Internacional, dos portugueses do Clube Lusitano, dos néones, do Bund, das taxi-girls russas e dos bordéis.

Senhor de uma prosa sem igual, José Rodrigues dos Santos está de regresso ao grande romance com a conclusão da história inesquecível das quatro vidas que o totalitarismo moldou. Lendo-se como um romance autónomo, O Reino do Meio encerra em grande estilo a polémica Trilogia do Lótus, uma das mais ambiciosas e controversas obras da literatura portuguesa contemporânea.

O livro foi lançado em setembro de 2017. Em Portugal, está à venda nas livrarias ou online. No Brasil, não achei nada.

A Nota final do autor:

Fecha-se assim a Trilogia do Lótus, dedicada aos autoritarismos e aos totalitarismos da primeira metade do século XX.

Pelas páginas de As Flores de Lótus, O Pavilhão Púrpura e O Reino do Meio desfilaram quatro histórias paralelas inspiradas em experiências verdadeiras que foram vividas por diferentes personagens. Algumas são baseadas em pessoas reais e outras são imaginadas, mas todas representam figuras cujo percurso nos permitiu mergulhar na ascensão ao longo das décadas de 1920 e 1930 de alguns dos regimes autoritários e totalitários que marcaram o século das guerras mundiais, incluindo as complexas dinâmicas políticas, sociais e econômicas que os conduziram ao poder.

No caso de Oliveira Salazar, de Rolão Preto, de Humberto Delgado, de Mao Tsé-tung e de Chiang Kai-shek, de resto, houve a preocupação de, nas partes em que estas personagens históricas aparecem, decalcar as palavras ipsis verbis do seu verdadeiro discurso político. Também certas frases não políticas foram copiadas das palavras originais destes homens, o que aconteceu sempre que pareceram pertinentes para captar certos traços das suas personalidades.

Alguns aspectos desta obra revelaram-se muito polêmicos e suscitaram um amplo debate público em Portugal, em especial em torno da revelação das origens marxistas do fascismo. Retomarei este assunto de forma aprofundada em tempo oportuno.

Marcações de texto deste Editor.
Sim, houve um “amplo debate”, chama o autor, eu chamaria de outra coisa. A esquerdice não tolera José Rodrigues dos Santos. Ainda continua na TV estatal, RTP, porque o seu afastamento/demissão daria a maior bandeira. Embora, julgo eu, nada fosse acontecer, à parte alguns protestos de poucos jornalistas, ‘radicais de direita’, ‘fascistas’...
Aprecie e analise alguns trechos que transcreverei a seguir.

Humberto Delgado fez um gesto repentino a indicar a janela do apartamento.
‘Se assim é, senhor doutor, deixe-me convidá-lo a espreitar a rua.’
A sugestão surpreendeu o anfitrião.
‘Perdão?’
‘A Legião e a Mocidade Portuguesa estão incondicionalmente ao lado de vossa excelência nesta hora de suprema gravidade’, explicou. ‘Organizámos uma grandiosa manifestação que vem marchando do Rossio para testemunhar o seu apreço, a sua gratidão, o seu encorajamento à imorredoira obra do senhor doutor. Espero que encontre nesta singela homenagem forças para prosseguir o seu caminho com a mesma determinação com que o tem feito até aqui.’

Ao ouvir a notícia, Salazar teve um esgar de pânico e quase se encolheu; ninguém detestava tanto as multidões como ele.
‘Uma... uma manifestação?’
‘Vá à janela saudar a rapaziada, senhor doutor. Dê-lhes palavras de alento, que eles bem precisam!’ Fez um gesto a indicar o exterior. ‘Eu vou agora lá fora coordenar este ato humilde e espontâneo de tributo a vossa excelência. Bem haja, senhor doutor. Bem haja!’

Muito ao seu jeito voluntarioso, o capitão Humberto Delgado despediu-se do presidente do Conselho e cortou pelos convivas em direção à porta do apartamento, desaparecendo tão depressa como surgira.

O capitão Humberto Delgado, que se tornou general, foi candidato oposicionista às eleições presidenciais de 1958. Atualmente dá nome ao aeroporto internacional de Lisboa, iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa e aprovada pelo governo do Partido Socialista.

’É verdade que neste momento estamos a ser ameaçados pelos russos a norte e pelos comunistas chineses pró-russos no Centro’, argumentou Sawa. ‘Mas ao contrário do que dizes, o Ocidente é a maior ameaça. Quem é que nos vendeu a ideia do mercado livre e outras balelas que só nos conduziram à corrupção, à perda dos velhos valores e à desgraça? Quem é que está a explorar as nações proletárias asiáticas? Quem é que representa o grande capital que oprime o proletariado? O Ocidente, claro!’ Abanou a cabeça. ‘Não, a coisa como está não pode continuar. O que temos de fazer primeiro é ocupar a China e libertá-la do domínio do Ocidente e do grande capital. Depois, já com as mãos livres, enfrentaremos os russos e derrotá-los-emos. Só assim salvaremos o Japão e libertaremos a Ásia da agressão capitalista e imperialista.’

Recuando um passo, Salazar assentou as mãos sobre as ancas enquanto contemplava a planta.
‘Posso ir viver para uma casa do Estado, mas haverá regras escrupulosas. Não aceito, por exemplo, que me paguem o salário de Maria [sua governanta, NdE] e das duas criadas. Pagá-los-ei do meu bolso. As despesas de funcionamento da residência, incluindo telefones, serão pagas por mim. À exceção da eletricidade do rés-do-chão, que será debitada à Assembleia Nacional. Já a eletricidade do primeiro andar, a zona residencial, será paga por mim. As roupas de cama e mesa pertencentes ao Estado só serão utilizadas em funções oficiais. No resto serão usadas roupas de cama e de mesa que me pertencem pessoalmente e que vou trazer da (rua) Bernardo Lima. Como trarei também a mobília para a zona residencial, pois o Estado não tem igualmente de me pagar isso.’
Estas preocupações arrancaram um sorriso a Artur.

Não havia ali nada para ver e os dois prosseguiram o passeio. Meteram pela Hermann Göring Strasse em direção às Portas de Brandeburgo [foto].

16 de julho de 1945
‘A prova de que a guerra é inevitável é este pacto recente entre a Alemanha e a União Soviética’, observou Fukui. ‘Como reagiram à notícia em Portugal?’

O português riu-se.

‘Acho que ficou toda a gente estupefacta’, disse. ‘Recebi uma carta de uma pessoa amiga em Lisboa a dizer que os nacionalistas andam incrédulos. Há militares no meu país que passavam a vida a cantar loas aos nazistas e a dizerem que só Hitler podia travar os comunistas e mais não sei quê, e que agora andam calados que nem ratos. Parece que até deixaram de aparecer nos cafés que costumavam frequentar, só para não serem gozados.’

‘E os comunistas’?

‘Oh, esses não têm vergonha! Depois de andarem anos a guerrear-se com os fascistas, agora dizem que isto é uma grande vitória da classe operária e que até têm muitas afinidades com os nazistas, pois afinal são todos socialistas. Agem como se isto fosse perfeitamente normal e suspeito que, se amanhã se zangarem outra vez com os nazistas, fingirão que nunca tiveram esta aliança e que tal rotura é outra grande vitória da classe operária.’ Baixou a voz, em jeito de desabafo. ‘Embora, devo reconhecer, me pareça que há de facto muitos pontos em comum entre estes ismos todos.’

‘Que quer dizer com isso?’
                                                    
‘Os que partilham todas estas ideologias, meu caro? O princípio totalitário do Estado, o socialismo e o culto da supremacia e da violência. Os nazistas falam em supremacia de uma raça, os fascistas na supremacia de uma nação, os comunistas na supremacia de uma classe. E todas preveem e sancionam o recurso à violência no processo histórico. Feitas as contas, estão todos bem uns para os outros!’

O homem ergueu o olhar do jornal e espreitou os recém-chegados, fixando sobretudo Fukui.
‘O senhor é chinês?’
‘Japonês.’
A revelação arrancou um sorriso do homem.
Ach so, um aliado!’, exclamou com satisfação. ‘Já viu as novidades? Parece que os russos declararam guerra à Inglaterra, a Itália começou a enviar tropas para nos ajudar e a França declarou a neutralidade. Maravilhoso, não é?’

O olhar surpreendido de Fukui desviou-se para o jornal. ‘Isso está escrito aí?’
‘Não, mas foi o que ouvi há pouco. Depois de acabarmos com a Polônia, vamos tratar da saúde dos ingleses, já?

O português e o japonês trocaram um olhar de bons entendedores; os boatos não paravam. Acharam, no entanto, por bem nada desmentir.

‘Pois’, assentiu Fukui. ‘Pelos vistos a Alemanha e a Rússia são agora aliados, hem?’

O alemão esboçou um sorriso e baixou a voz.
Ach, isto é maravilhoso!’, disse. ‘Sabe, antes de ser nacional-socialista fui comunista, pelo que deve compreender como me sinto feliz. Esta aliança é a união dos socialismos contra o capitalismo. Wunderbar!

Os dois estrangeiros decidiram nem sequer alimentar a conversa, tal a sensibilidade da  matéria.

Foi Artur que voltou a falar.
‘E reparou naquilo que o careca disse sobre ter sido comunista antes de se tornar nacional-socialista? Já em Itália aconteceu o mesmo. Quem criou o fascismo foram justamente os comunistas. Que bicho andará a morder os socialistas da Europa para se transferirem de armas e bagagens para o socialismo nacionalista?’

‘Não é só na Europa, Artur-san. Na Ásia é a mesma coisa.’

‘Está a brincar...’

‘A sério. Quando eu andava na Universidade Imperial, muitos dos meus colegas eram comunistas. Pois a maior parte deles já abandonou o Partido Comunista e defende agora o socialismo nacionalista. São isso no fundo os ultranacionalistas.’

‘Mas... porquê?’

‘Porque chegaram à conclusão de que o internacionalismo é uma fantasia. Olhe para o Comintern, Artur-san. Foi criado para encorajar a revolução do proletariado em todo o mundo, não é verdade? Mas o que querem realmente os russos é gerar problemas em redor deles para se protegerem. A revolução mundial do Comintern é na verdade uma revolução para salvar a União Soviética. Ou seja, os bolcheviques usam o internacionalismo para fortalecer o seu nacionalismo. Assim sendo, porque razão iriam os comunistas japoneses lutar para defender outro país? É por isso que muitos comunistas, incluindo marxistas destacados como Sano Manabo e Ryu Shintaro, fizeram tenk, ou conversão, e abraçaram o kokutai, a nação. Agora andam a apregoar o socialismo nacionalista.’

‘Ou seja, o Japão começou a seguir as pisadas da Alemanha, da Itália e da Rússia.’

‘Todas as nações que se sentem exploradas pelos grandes países capitalistas estão a abraçar uma versão nacionalista do socialismo, Artur-san. Até a China. O que é Kuomintang senão a versão chinesa do socialismo nacionalista? E mesmo o Partido Comunista Chinês, se sobreviver à guerra, acabará um dia por cortar com os russos e decretar uma versão nacional do socialismo, verá.’

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