Helena Garrido
Vivemos na era da governação por
ilusionismo. Promete-se e não se cumpre contando que ninguém repare nem
denuncie. O caso das pensões foi o último exemplo.
A frase que reivindica a medida é de cortar o coração. O Governo tem de garantir “as reformas por inteiro a quem começou a trabalhar criança”. Ouvimos no Parlamento a líder do Bloco de Esquerda apelar a essa decisão, com a voz colocada no tom certo para todos sentirmos profundamente a injustiça de não dar aos nossos concidadãos, desprotegidos no nascimento, essa possibilidade. A medida foi aprovada pelo Governo e anunciada. O BE pôde mais uma vez dizer que conquistou, a ferros, mais justiça social, mais igualdade. Se não fosse ele nada disto teria acontecido. (Ninguém se lembra, ou não se quis lembrar, nesta fase, que essa bonificação para quem começou a trabalhar muito novo já existia).
Eis se não quando o diploma
que concretiza a medida é publicado. Afinal o Governo dá com uma mão aos que
“começaram a trabalhar crianças” e tira com a outra. De tal maneira que o novo
regime, supostamente mais generoso, até pode ser, em alguns casos, pior do que
o anterior. Nenhum problema, responde o Governo. Passa a existir um menu, o
candidato a pensionista com muitos anos de descontos escolhe o mais favorável,
oficiosamente.
A notícia foi revelada pelo Jornal de Negócios. No regime
antes desta conquista, exemplifica o Negócios, uma pessoa que tivesse começado
a trabalhar aos 14 anos e se reformasse aos 64, perfazendo 50 anos de
descontos, teria uma penalização na pensão de cerca de 14%, por via do fator de
sustentabilidade, mas também uma bonificação pela sua longa carreira
contributiva. No novo regime, pedido pelo Bloco, o Governo acabou com a penalização,
mas, sem nada dizer, também eliminou a bonificação.
Quais foram as reações? O
Governo, que tem no ministro Vieira da Silva a tutela deste assunto, diz logo
ao Negócios que as pessoas podem optar pelo regime que lhes seja mais
favorável, escolhendo a lei anterior de forma “oficiosa”, o que quer que isto
signifique. Uma espécie de menu para complicar ainda mais as complexas teias da
segurança social.
O Bloco de Esquerda pede,
timidamente, explicações, mas dizendo pelo meio que o objetivo que tinha foi
atingindo. Agora já não é bem a justiça para com quem começou a “trabalhar
criança”. Acrescentam-se tons de conflito geracional ao afirmar-se que o objetivo
“é permitir que as pessoas deixem de trabalhar, tenham acesso à reforma por
inteiro, respeitando simultaneamente as gerações mais velhas e dando
oportunidades de trabalho às gerações mais novas” como se pode ler aqui. Em linguagem menos polida, estamos perante o “deem
dinheiro aos velhos para eles deixarem de trabalhar e darem lugar aos mais
novos”.
Mantendo a linguagem direta:
as pessoas foram enganadas, pelo Governo seguramente, pelo Bloco não sabemos.
Quem acreditou, naquilo que os protagonistas políticos disseram, foi pedir a
sua pensão e pode não ter feito as contas com o regime anterior. Como se
esperava, as reações mais críticas foram do CDS, que designou a medida como um “logro”, do PSD
e do PCP
Poderíamos passar ao largo
deste caso se ele fosse uma excepção. Mas aos poucos – como diz a sabedoria
popular, a verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima – vamos sabendo de
mais este e aquele caso. Muitos são difíceis de provar. Uma política
ilusionista eficaz é aquela que diz que está a tomar medidas que afetam grupos
não organizados e, por isso, é praticamente impossível verificar se é assim ou
não. Por exemplo, vamos ouvindo alguns pensionistas a queixarem-se que não
foram aumentados, mesmo levando em conta o fim dos duodécimos. Mas como
confirmar que isso não é apenas um caso isolado?
Outros casos hão em que o
tratamento estatístico gera controvérsia. Exemplo disso é a alteração no IRS,
que passou a estar em vigor com o Orçamento do Estado para 2018. As simulações
realizadas pela Comissão Europeia (que podem ser lidas aqui na página 27 ou nesta notícia) mostram que esta reforma do IRS é regressiva, ou seja,
agrava a distribuição do rendimento, beneficiando mais as classes de
rendimentos mais elevados. Os impostos descem mais para quem ganha mais e
trabalha por conta de outrem, porque falta aqui a análise dos trabalhadores
independentes.
O Governo, pela voz do
ministro das Finanças, não desmente a Comissão Europeia. Diz que a sua análise
é “incompleta”, que deveria olhar para o período de 2016 a 2018 e não apenas
para o que se vai passar este ano. Conclusão: as medidas deste ano no IRS
beneficiam mesmo os que têm rendimentos mais elevados, apesar de terem sido
apresentadas como atingindo o objetivo exatamente oposto. Decisões destas, sem
que se ouça uma palavra do PCP e do Bloco de Esquerda seriam impensáveis noutros
tempos. E aqui temos mais um exemplo do ilusionismo que se tem praticado na
governação.
Outros dossiers revelam exatamente
as mesmas características, de ilusionismo, de expectativas criadas que não se
concretizam e, em termos gerais, de infantilização da sociedade.
Transformando-nos em incapazes de compreender que o Estado não tem, de facto,
dinheiro para fazer aquilo que o Governo está a prometer. Que a ideia de que
havia uma alternativa, por contraponto ao não há outra alternativa (retirado da
expressão em inglês There Is No Alternative, TINA), é viável em tudo menos
quando não há dinheiro.
É nesta ilusão de alternativa
que a prometida integração dos precários se vai atrasando, assim como a
aplicação as progressões nas carreiras. É por isso que a Saúde se vê congelada
e com necessidade de ser chamada aos rigores financeiros das estratégias ativadoras
de Centeno. É também por isso que se arrastaram os processos das vítimas de Pedrógão,
que só o Presidente conseguiu acelerar para vermos agora em março o pagamento
das primeiras indemnizações às vítimas. Mas faltam ainda os feridos.
Do ponto de vista da política
pura, a atuação deste Governo é digna de admiração e justifica que, quando a
poeira do tempo e da ilusão se desvanecer, se estude como se pode ser eficaz na
arte de iludir. Claro que sem a ruptura de regime, que António Costa conseguiu,
a que destruiu o muro entre o PS e o PCP, seria muito mais difícil criar estas
ilusões. Neste momento teríamos muito mais informação sobre o que se está a
passar na Saúde, na Educação, nos aumentos de rendimento que se prometem e não
acontecem.
A aproximação das eleições –
estamos a pouco mais de um ano das europeias – obrigará o PCP, muito mais do
que o Bloco de Esquerda, a assumir de novo o seu papel de denúncia das
injustiças, com os sindicatos que são seus, mas também a olhar para os pequenos
negócios e aqueles que estão mais esquecidos. Foi o caso do último alerta de
Jerónimo de Sousa para a estratégia que o Governo está a seguir nos incêndios.
Estamos a assistir a “uma gigantesca operação de desresponsabilização
propaganda” na limpeza das florestas, denunciou o líder do PCP, considerando que o Governo quer
que a responsabilidade de uma eventual nova tragédia caia sobre os
proprietários e as autarquias. Uma estratégia que já se tinha percebido.
Sendo de elogiar a eficácia
desta forma de governar – eficácia essa que está traduzida nas intenções de
voto que as sondagens dão ao PS –, é de lamentar que se esteja a infantilizar
os portugueses, tratando-os como incapazes de compreender que não há dinheiro
para tudo. Pior do que isso, impedindo que se instale na sociedade uma cultura
de exigência com a forma como se usa o dinheiro público.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
22-3-2018
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