Sérgio Barreto Costa
Uma boa telenovela tem sempre muitos
episódios; uma má telenovela, também. Não há, pois, motivo, independentemente
da qualidade, para não se continuar a escrever sobre a contratação de Passos
Coelho pela Universidade de Lisboa.
Um dos argumentos mais
interessantes dos críticos é o que se baseia na suposta incoerência ideológica:
o ex-PM é um liberal e, por isso, não deveria trabalhar no sector público. É
uma objecção que me surpreendeu: depois de tudo o que foi sendo dito pela
oposição durante os quatro anos do seu mandato, estava convencido de que já não
existia nada público em Portugal! Afinal, talvez por esquecimento, parece que
ainda sobrou a Universidade de Lisboa.
Como estas pessoas seriam as
primeiras a criticá-lo caso fosse contratado por uma empresa privada,
acusando-o de estar a levar segredos de Estado para o mundo dos negócios,
conclui-se que o que não querem é deixá-lo trabalhar! Já houve um tempo em que
se combatiam os adversários políticos com argumentos e raciocínios; agora, pelo
que vejo, a ideia é tentar que fiquem sem dinheiro para comer. É que os
liberais acreditam na “mão invisível”, mas as contas que têm para pagar,
incluindo a do talho e a da peixaria, veem-se bem. De qualquer forma,
afigura-se-me uma boa estratégia: urna por urna, já que não conseguiram
vencê-lo na de voto, pode ser que consigam derrotá-lo quando estiver dentro de
uma fúnebre, morto por inanição.
E a quem se destinam, então,
os empregos públicos? Se não são para os liberais, são para quem? Olhando para
a História das Ideias Políticas e para a História do Pensamento Económico,
lendo os escritos de John Locke, de Adam Smith e dos posteriores teóricos do
liberalismo, devem ser para os defensores das monarquias absolutas ou das
ditaduras republicanas, e para os adeptos do planeamento central de uma
economia e propriedade totalmente coletivizadas. É que todos os outros,
sociais-democratas e democratas-cristãos, conservadores e socialistas
democráticos, são, em diferentes graus, liberais. Felizmente! Mesmo que o não
saibam ou que o não queiram admitir, e que prefiram torcer o conceito à medida
de uma caricatura.
Mas entremos no jogo e
analisemos a questão à luz da caricatura: os liberais querem um Estado mínimo e
uma economia de mercado livre; os restantes querem um Estado máximo e uma
economia fortemente regulada; Pedro Passos Coelho faz parte dos primeiros.
Deve, por isso, recusar-se a ganhar a vida à conta de dinheiros públicos? Por
mim, tudo bem, desde que os segundos se recusem a ganhar a vida à conta de
dinheiros privados. Se o Francisco Louçã pode trabalhar para o grande capital
do Francisco Pinto Balsemão sem qualquer problema, não vejo motivos para
desenterrar agora “incoerências”. Podem ambos defender que o país teria a
ganhar com mudanças: nacionalizando a SIC e o Expresso, no caso de Louçã;
privatizando a Universidade de Lisboa, no caso de Passos. No entanto, enquanto
isso não acontece, vivem os dois no Portugal que existe, e têm todo o direito a
trabalhar onde bem lhes apetecer. A alternativa é vivermos todos no país
imaginário que idealizamos e, nesse caso, solicito desde já que me autorizem a
pagar apenas metade dos impostos que pago atualmente e a cumprir apenas um terço
dos decretos, portarias e despachos existentes.
Não nos esqueçamos que as
oportunidades de emprego em Portugal sempre foram escassas e, ideologias à
parte, o Estado que o ex-líder laranja deixou em 2015 é praticamente do mesmo
tamanho do que aquele que encontrou em 2011. Se a esquerda o tivesse apoiado
quando ele mostrou vontade de o reduzir, existiriam neste momento menos lugares
disponíveis para o acolher. Como optaram por combater ferozmente essa
estratégia, agora aturem-no.
Não sou porta-voz de nenhum
movimento de reforma liberal mas, salvo melhor opinião, a ordem dos
acontecimentos não poderá ser outra que não esta: o Estado retira-se
progressivamente de algumas áreas, o que permitirá a diminuição dos seus gastos
e dos regulamentos que emite, o que permitirá a diminuição dos impostos que
cobra às pessoas e às empresas e a diminuição da carga burocrática, o que
permitirá um aumento da poupança e do investimento, o que permitirá um
crescimento da riqueza nacional, o que permitirá novas e melhores oportunidades
de trabalho na economia privada. É que esse desejo socialista de ter um sector
público gigantesco, omnipresente e em permanente expansão, para depois tentar
impedir que lá trabalhe quem com ele não concorda é, à primeira vista, um
bocadinho maldoso. Embora compreenda a sua potencial eficácia: se à mesa do
Orçamento não há lugar para liberais, e se os cargos que mais influenciam as
decisões políticas são sempre pagos pelo Orçamento (deputados, governantes,
chefias militares, dirigentes da administração central, dos IPs, das EPs,
etc.), então está montada a espiral de morte dessa filosofia e dos seus
partidários. Seria a versão portuguesa do “fim da história”, com uma conclusão
ligeiramente diferente da que Fukuyama nos apresentou. De todas as esparrelas
que já vi, esta é, sem dúvida, das mais bem concebidas.
Agora, se o objetivo de toda
esta polémica não é armadilhar o debate, mas apenas brincar com os significados
de “coerência” e de “incoerência”, então estão todos perdoados e deixo também
aqui o meu contributo: desde a publicação da Riqueza das Nações,
com a sua história do talhante, do cervejeiro e do padeiro*, que a perspectiva
liberal sobre a natureza humana está definida e o papel do interesse
próprio no andamento do mundo devidamente sublinhado. Ora, se na
opinião de Passos Coelho os funcionários públicos são relativamente
privilegiados em relação aos trabalhadores do privado, não vejo qual é a
incoerência na escolha que acaba de fazer. Quem deve refazer o raciocínio são
os seus opositores, que andam sempre a reclamar das condições de trabalho do
funcionalismo e dos múltiplos sacrifícios que lhe são impostos. É altura de
serem coerentes e de agradecerem ao ex-PM a disponibilidade que demonstra em
carregar tamanha cruz.
* “Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou
do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles
têm o seu próprio interesse” – Smith (1776); livro I, cap. 2
Título e Texto: Sérgio
Barreto Costa, Blasfémias,
21-3-2018
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