João Carlos Espada
Sim, possivelmente, “Marx vive” — nas
culturas políticas tribais que desconhecem o primado da lei. Mas nem todas as
culturas políticas são tribais. Por esta razão, não somos todos marxistas.

Pedro Norton terá respondido indiretamente
a estas teses na revista Visão com um excelente artigo intitulado “Liberais somos todos nós”. E João César das Neves ripostou diretamente no Diário de Notícias.
Basicamente, recordou ele que
“O
elemento chocante é que nessas longas elaborações ninguém refere o aspecto mais
relevante: a tal mudança que Marx fez no século XX gerou milhões de mortos,
miséria inaudita e as maiores catástrofes económicas de sempre, da coletivização
da agricultura soviética ao “grande salto em frente” maoísta. É esquecimento de
peso!”
Tem César das Neves toda a
razão. E tem ainda razão quando recorda que essas tragédias foram provocadas em
nome do marxismo e da sua crucial doutrina da luta de classes. Eu
acrescentaria: daquilo que Marx designou como a doutrina científica da luta de
classes.
Ao contrário do que costuma
ser dito sobre Marx, o que é distintivo da sua doutrina não é o impulso moral
de indignação perante a pobreza das classes trabalhadoras. Esse impulso moral
existiu em vastos movimentos sociais não marxistas e antimarxistas, vários,
aliás, de forte inspiração cristã. Estes movimentos foram responsáveis por
profundas reformas sociais no capitalismo democrático — reformas que ocorreram
sob os olhos dos próprios marxistas, enquanto estes pateticamente gritavam que
o capitalismo não era reformável.
O que foi distintivo do
marxismo foi a atribuição de um carácter alegadamente científico à teoria da
luta de classes. Marx reclamou ter descoberto as leis do desenvolvimento histórico,
à semelhança das leis do desenvolvimento da natureza orgânica conjecturadas por
Darwin. O marxismo seria por isso uma “doutrina científica” que explicava toda
a história da humanidade com base em leis inexoráveis. Daí decorria que o
socialismo e o comunismo sucederiam inexoravelmente ao capitalismo, da mesma
forma que este sucedera inexoravelmente ao feudalismo, como este sucedera ao
regime escravagista e este, por sua vez, sucedera ao “comunismo primitivo”.
Não vou aqui recordar em
detalhe a demolidora crítica que Karl Popper fez a esta visão
pretensamente científica da história. Popper simplesmente mostrou que esta
teoria não é testável pelos factos, não podendo por isso ser científica —
trata-se de mera profecia oracular.
Acresce que, nas poucas
previsões específicas que fez, a teoria historicista de Marx foi rotundamente
refutada pelos factos. (Basicamente, em vez de produzir a pauperização relativa
e absoluta prevista por Marx, o capitalismo democrático retirou o maior número
de pessoas da pobreza e ampliou as classes médias numa escala sem precedentes).
Por outras palavras, os marxistas acreditavam que sabiam, sem saberem que
acreditavam.
Mas Popper e outros autores
fizeram uma adicional pergunta muito simples ao grandioso esquema marxista de
explicação da história humana: mesmo que essa teoria fosse verdadeira, qual
seria a razão moral para defender o comunismo? Essa razão, para ser de natureza
moral, não poderia consistir apenas num juízo de facto estabelecendo a
inexorabilidade do futuro advento do comunismo.
Esta é uma pergunta
inconveniente. O “socialismo científico” de Marx sustentava que não existem
padrões morais absolutos e intemporais. Todos são apenas subproduto da época
histórica, do nível de desenvolvimento das forças produtivas, e até dos
interesses de cada classe. Sendo a classe operária a classe que representa o
futuro — inexoravelmente determinado pelas leis “científicas” da história — os
seus interesses exprimem a moral “cientificamente” ditada pelas leis do
desenvolvimento histórico.
Por outras palavras, a moral
do marxismo era a moral “científica” do desenvolvimento histórico. Estão bem de
ver as consequências tremendamente imorais desta teoria da moral “científica”.
Se não há padrões morais intemporais e independentes dos interesses de classe,
qualquer grupo de fanáticos pode — e até deve — usar todos os meios ao seu
alcance para impor aos outros as suas próprias crenças “científicas” sobre o
futuro inexorável do desenvolvimento histórico.
Isto significa que o marxismo
tentou abolir o fundamental conceito moral ocidental — oriundo de Atenas, Roma
e Jerusalém — de obediência a regras gerais, imparciais, abstratas e iguais
para todos. Em seu lugar, colocou a ideia imoral (em rigor, tribal) de uma
“moral científica ditada pelas leis do desenvolvimento histórico”. É isto que
explica a doutrina da legitimidade da revolução violenta para derrubar o
chamado capitalismo — em rigor, para derrubar democracias liberais fundadas no
primado da lei, igual para todos. É isso que explica os milhões de mortos
provocados pelo marxismo no poder, libertado de escrúpulos morais imparciais
através da doutrina da “moral científica do desenvolvimento histórico”.
Isto também explica por que
motivo o marxismo nunca triunfou em democracias liberais, mas apenas em
sociedades autocráticas, como as da Rússia e da China, que desconheciam o
princípio da igual liberdade de todos — e de todas as “classes” — sob o primado
da lei. Nessas sociedades autocráticas, o marxismo apenas reforçou — e deu uma
legitimidade pretensamente “científica” — à cultura tribal dominante que não
reconhece uma lei moral imparcial acima das “tribos” (ou das “classes”, ou
das cliques de oligarcas, ou dos membros do partido, ou das seitas de
apaniguados).
Em suma: será verdade que
“Marx vive”, como titulava a revista do Expresso? A resposta é simples: sim,
possivelmente vive — mas apenas nas culturas políticas tribais que ignoram o
primado da lei e só conhecem a lei da força. Mas nem todas as culturas
políticas são tribais. Por esta razão, não somos todos marxistas.
Título e Texto: João Carlos Espada, Observador,
26-3-2018
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