Pedro Almeida Vieira
Há um momento em que um observador estrangeiro, mesmo o mais benevolente, deixa de suspender o juízo e começa a franzir o sobrolho: a justiça no Brasil não tem jeito. Não é apenas um lugar-comum; é uma constatação empírica de quem conhece, com algum detalhe, a génese desse grande país unificado artificial e miraculosamente (sabem quantos países saíram das colónias espanholas na América?) e acompanha, há anos, os desdobramentos de um sistema judicial que se tornou, simultaneamente, protagonista e encenador da vida política.
Aquilo que por cá, em
Portugal, ainda chamamos de sistema de Justiça – mesmo assim com demasiados
defeitos e falhas –, lá assume um figurino peculiar, quase barroco, em que os
magistrados do topo não se limitam a interpretar leis e julgar litígios: são eles
próprios personagens centrais da narrativa pública. E o pior é que parecem
saborear esse estatuto de protagonistas.
Não se trata aqui de uma
denúncia ideológica, nem de uma defesa de qualquer corrente política, seja a
esquerda lulista ou a direita bolsonarista. A questão é outra e bem mais séria:
é o Estado brasileiro enquanto tal, é a credibilidade das instituições, é o
pacto social que se fragiliza cada vez que um julgamento se transforma
num reality show televisivo, com ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) a darem entrevistas, a trocarem farpas em plenário, a medirem a
popularidade nas redes sociais e a decidirem o destino de candidatos que
polarizam o país. É certo que as democracias precisam de tribunais
constitucionais fortes. Mas não precisam de tribunais-vedeta.
O STF é, em teoria, o guardião último da Constituição. Na prática, tornou-se um ator político de primeiro plano. Cada ministro detém um poder quase imperial sobre os processos que relata: decide quebras de sigilo, prisões preventivas, diligências de busca e apreensão, medidas cautelares de grande impacto, e depois, no julgamento, apresenta o seu voto – o qual serve de guia para os demais ministros, que o acompanham na maioria dos casos. É um sistema que mistura investigação e julgamento numa única pessoa, criando o risco óbvio de pré-julgamento. Em democracias maduras, essas funções estão separadas: quem investiga ou supervisiona a legalidade da investigação não deve ser quem julga o mérito. Mas isso não se circunscreve ao STF – é visível noutros níveis.
O exemplo paradigmático é o de
Sérgio Moro e da Operação Lava Jato. Há quase uma década, Moro conduziu a
investigação, determinou prisões, autorizou escutas e, no fim, sentenciou Lula
da Silva. Mais tarde, o próprio STF reconheceu a sua parcialidade e anulou o
processo. Mas o mal estava feito: Lula ficou inelegível em 2018, passou quase
dois anos preso e a eleição presidencial decorreu sem a sua participação.
E depois ficou indelével um
rasto de dúvida: será que houve justiça ou apenas uma coreografia judicial com
efeitos políticos? E depois sabemos o que sucedeu com Sérgio Moro: integrou em
finais de 2018 o Governo Bolsonaro, como ministro da Justiça, ‘aventura’ que
durou cerca de um ano e meio, tendo depois saltitado por dos partidos. E hoje é
senador da União Brasil pelo estado do Paraná. Temos, portanto, um magistrado
com vaidades e pretensões políticas a conduzir um julgamento enviesado,
independentemente dos actos e culpas do arguido.
Hoje, repete-se um enredo
semelhante, desta vez com Jair Bolsonaro. Os inquéritos multiplicam-se, as
decisões monocráticas sucedem-se, e já houve consequências políticas paralelas:
o ex-presidente está impedido de concorrer durante oito anos e arrisca-se agora
a ter prisão declarada se o STF assim o decidir (neste momento, está um
‘resultado’ de 2 a 1). Não se trata aqui de absolver Bolsonaro das acusações –
é evidente que ele terá responsabilidades políticas, talvez até criminais, no
ambiente de contestação e na invasão dos edifícios dos Três Poderes a 8 de
Janeiro de 2023. Mas o problema é outro: a Justiça parece ter pressa em dar uma
resposta exemplar, uma espécie de purga política que tem tanto de punitivo como
de pedagógico. Ora, Justiça não deve ser vingança nem pedagogia; deve ser
justiça.
E, pior, assiste-se a uma celebração mediática dessa punição como espectáculo. As televisões e os
portais de notícias transmitem cada voto, cada frase sonora, cada ironia
lançada no plenário. O processo judicial torna-se entretenimento, combustível
para as bolhas de ódio nas redes sociais. É o ‘circo mediático’ que transforma
um julgamento em espectáculo, que transforma magistrados em celebridades e réus
em vilões ou mártires, conforme o lado do espectador. O resultado é um reforço
da polarização, não a sua superação.
A Justiça brasileira precisa
urgentemente de mecanismos que a resguardem dessa tentação de protagonismo. O
juiz de garantias, figura prevista, mas não implementada, é um desses
mecanismos. Num sistema verdadeiramente acusatório, a investigação é conduzida
pelo Ministério Público e supervisionada por um juiz de garantias, que decide
sobre a legalidade das provas, mas não julga o mérito.
Depois disto, outro juiz, ou
um colegiado, faz o julgamento final. Isso reduz drasticamente o risco de
parcialidade e aumenta a confiança de que o arguido está a ser julgado por
alguém que não se comprometeu previamente com a sua condenação, algo que não
sucedeu com Lula e não sucede agora com Bolsonaro.
Mostra-se também fundamental
limitar o poder monocrático dos ministros do STF. Um único juiz não pode ter
nas mãos a possibilidade de suspender leis, interditar políticos ou bloquear
redes sociais inteiras sem um debate colegiado prévio, como já se observou com
Alexandre de Moraes. O Brasil precisa de recuperar a noção de que tribunais são
árbitros, não jogadores – e que o seu papel é aplicar a Constituição, não
moldar o tabuleiro político ao sabor de convicções pessoais.
Não se trata aqui de criar uma
agenda para beneficiar Bolsonaro – sobre quem não tenho a mínima simpatia
pessoal, e ainda menor afinidade de valores e princípios – ou qualquer outro
arguido célebre. Trata-se de evitar que, no próximo ciclo, outro nome seja
sacrificado no altar do justicialismo, talvez alguém da esquerda, talvez um
líder social, talvez um jornalista incómodo. Quando a Justiça se torna uma arma
política, cedo ou tarde será usada contra todos.
E há ainda uma dimensão moral
que não pode ser esquecida. Justiça não é apenas punição, é também redenção.
Uma democracia precisa de encontrar caminhos para reintegrar aqueles que
erraram, desde que cumpram a pena que lhes foi imposta. Impedir um político de
se candidatar durante quase uma década pode ser uma medida legítima, mas será a
mais inteligente para um país que precisa desesperadamente de reduzir a sua
polarização?
Não seria mais útil permitir
que Bolsonaro e o bolsonarismo enfrentem o juízo das urnas, em vez de os
transformar em vítimas e lhes dar o combustível da narrativa de perseguição?
O Brasil precisa de Justiça,
não de justicialismo. Precisa de previsibilidade jurídica, não de decisões que
parecem responder ao clamor das ruas ou às capas dos jornais. Precisa de
magistrados que sejam respeitados pelo seu silêncio e pela sua sobriedade, não
pelas suas tiradas de efeito. Precisa de um sistema que trate Lula, Bolsonaro
ou qualquer cidadão comum segundo as mesmas regras, e que não permita que a
história de um processo se confunda com a biografia de um ministro.
Enquanto isso não acontecer,
continuaremos a assistir a julgamentos históricos que, mais do que fortalecer a
democracia, a corroem. Continuaremos a ver réus que se tornam heróis ou
mártires, tribunais que se tornam palcos e ministros que se tornam estrelas.
Continuaremos, em suma, a dizer que a justiça no Brasil não tem jeito. Mas tem
de ter: porque sem ela não haverá redenção possível para um país que precisa
desesperadamente de paz institucional.
Título, Imagem e Texto: Pedro Almeida Vieira,
Página UM, 11-9-2025
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