terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Aparecido rasga o verbo] Do fruto, o amargo

Aparecido Raimundo de Souza

Para Amanda

QUANDO EU IA EMBORA, ela fazia questão de me trazer até a porta do condomínio. Sua figura de criança acrescentava à entrada dos prédios, formas novas e coloridas. Dentro destas formas, conversávamos um pouco, trocávamos risadas e cumplicidades num espaço que para mim se fazia espantosamente limitado.

Depois eu me despedia e partia. Partia devagar, a passos curtos, envolto numa espécie de luto onde me considerava um cadáver ambulante, escarmentado do cotidiano civilizado. Ela, na sua inocência, ficava parada, estática, me espiando, olhinhos compridos, feito gritos num silêncio voraz, sem se desviarem do ponto nevrálgico, como se aquela separação doesse em seu peito de uma maneira estranhamente profunda.

Eu sabia. Tinha certeza de que o seu amor por mim, indubitavelmente se tornara lendário. Talvez se doesse por dentro, intimamente, porém, as galas protetoras do seu sentimento de mocinha criada sem pai, e, como ela não soubesse expressar esta querença de forma plena, e em face da idade, o Deus Maior lhe colocara, na alma, uma dorzinha branca e branda, suportável, nascida de dentro das fontes das memórias que lhe envolviam, com a doçura dos pantanais das eternas quimeras advindas de um leque de sonhos sutis.

Por meu turno, eu não sabia exprimir a minha angústia. Angústia confrangida, atribulada, que me espedaçava como uma navalha afiada dentro da própria mortificação que me consumia. Meu descontentamento triplicava. Separado da mãe dela, eu precisava realmente voltar para casa. Voltar correndo, desinquieto, aperturado, sufocado, onde outra família me aguardava. O fato é que esta desunião doía e doía por muito tempo. Recordo também, que nestas ocasiões, eu tremia na base, todavia, me restituía ao que precisava ser feito. 

E fazia. Dava outro abraço, outro beijo, renovava o aconchego, a hospedagem daquele momento sublime. Quase perpétuo. Pegava entre as minhas as suas mãozinhas pequenas, frias e trêmulas num agasalho que a mim próprio me tirava fora do chão. Lembrava, entretanto, de me pôr a caminho de novo, minutos depois, quando uma lágrima solitária insistia despencar rosto abaixo. Eu não podia passar para ela o meu estado de fraqueza, de aniquilamento. Seria desesperador. Talvez até fatal. Não só isto. Igualmente não soaria justo. 

Ilustração: depositphotos
Nesta hora, de fato, eu lutava comigo mesmo, pelejava tenazmente. Guerreava. Uma parte queria ficar, a outra me dizia que eu precisava ir de vez, debandar sem mais delongas. Ou tudo se transformaria numa fuzarca cruel, num disjunto arredio, desterrado e árido, difícil de encarar ou suportar.

Ela, por algum motivo inimaginável, insistia, perseverava, permanecia cravada. Não desgrudava, não entrava. Não me dava às costas. Parece que adivinhava o que me martirizava. O que me açoitava o espírito, o que me consumia as entranhas. Talvez imaginasse o que entornava o caldo, ou quem sabe, tivesse a visão ampla de prever que uma ligação (ou uma espécie de elo) muito forte atuava entre nós e não deixava o convívio do insólito se desfazer com a aparente banalidade do cotidiano que intencionava nos desvirtuar de uma senda previamente traçada. 

Em face disto, ela permanecia na porta do condomínio e ali ficava até eu virar a esquina. Quando então eu sumia do seu campo ótico, ela corria afoita. Voava ligeira. Como uma sombra, passava por debaixo das borboletas da guarita do sentinela e ganhava o final da calçada. Deste ponto, me dava um tchau e jogava um beijo. Um beijo que eu pegava no ar, esfomeado e audaz, animoso e longanime e guardava dentro do peito como se fosse uma relíquia preciosa de valor inestimável.

Depois outro beijo e mais outro.  Para completar a minha amargura árida, inabitada, banida e aumentar a minha dor interna, tutelada por um medo visível e contagioso, e ainda, para pousar a saudade no meio de nosso distanciamento, como um sofá retrátil dentro de uma piscina, ela desenhava, no ar, com os dedinhos, em gestos simples, a figura invisível que traduzia o formato de um coração.

Penso que a nossa disjunção, naquele dado momento, nada mais significava que duas almas se entrelaçando numa mesma forma sincronizada de eternas e imorredouras emoções.

Eu ia embora. Precisava ir embora. Tinha que vencer o “não poder ficar mais”. E ela, valente, não arredava. A impressão que me passava, era a de que o meu destino se juntava ao dela num amplexo letal. Tudo isto se constituía no restolho de uma consumação abissal na minha descomedida vontade de matar o tempo que restava de alguma forma imperdoável. A partir daí não via mais nada diante de mim. Não enxergava, a não ser o rostinho dela, maculado pelo divórcio que batia forte e me castigava a alma, deixando todos os meus pensamentos, todos os meus queixumes e desejos em completo estado de estupor frangalhado.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De São Paulo, Capital. 29-1-2019

Colunas anteriores:

3 comentários:

  1. Uma linda declaração de AMOR! As relações familiares são constelares. E ainda afirmo à você que este AMOR entre PAI e FILHA é para a vida toda e transcende o tempo...

    ResponderExcluir
  2. Desta vez rasgou o coração.

    ResponderExcluir
  3. Rasgou o coração no BOM SENTIDO! (Obs: Pelo amor de DEUS, heim Aparecido???)

    ResponderExcluir

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-