Foto: Gonçalo Villaverde
Foi uma semana trágica por todo o País. Em São Pedro do Sul, o fogo rondou as populações durante uma semana, destruindo num dia o que tinha ficado por arder do dia anterior. Lançou o pânico nas aldeias, levou os bombeiros à exaustão e deixou feridas na alma de quem viveu noites e dias de sobressalto. O balanço ainda está a ser feito, mas inclui a morte de um bombeiro de Alcobaça, que dedicou grande parte da sua vida ao combate às chamas e foi apanhado num acidente quando fugia do lume. Morte que não foi única nesta semana negra que levou também uma jovem bombeira de Gondomar. Duas tragédias separadas por poucas centenas de quilómetros e menos de 24 horas. As críticas vão para a falta de coordenação e as culpas para os suspeitos do costume: os que não limpam as matas ou lhes pegam fogo.
As lambras estendiam-se ladeira a baixo na direcção do autotanque de Alcobaça, acabado de capotar. Mas nem a água que o Kamov despejava por cima nem os braços dos muitos homens no terreno estavam capazes de as travar. Numa corrida contra o tempo, entre gritos e pânico, os bombeiros tentavam a custo retirar o motorista da viatura, ferido com gravidade e preso de pernas para cima. O bombeiro que seguia ao lado já fora desencarcerado, sem vida. E os três que vinham no banco de trás tinham fugido do carro pelo próprio pé, mãos na cabeça e desespero no rosto. João Pombo tinha 42 anos e metade ao serviço dos bombeiros. No meio da confusão, recorda Mário Pereira, a voz embargada pelo sobressalto da memória, era preciso agir depressa. "Das duas, uma: ou tirávamos o ferido o mais depressa possível, ou em vez de um morto éramos 20 carbonizados."
Já de saída, com o fogo a cercar o local, Mário ainda temeu pela vida. Pela sua, a dos militares e bombeiros no local, e principalmente pela dos Voluntários de São Pedro do Sul que chefiava nesta acção de desencarceramento. Aos 34 anos, o adjunto de comando de uma das corporações mais castigadas pelos fogos nesta semana trágica para o País, sabe que é nestas situações-limite que se joga a sua missão. E que um erro pode ser fatal para quem socorre ou é socorrido. Em última instância, a responsabilidade é sempre sua. E esse é um fardo pesado.
"É como se fosse uma guerra", explica, desculpando-se com o cansaço que lhe turva o raciocínio nesta manhã de quarta-feira. Mas sem armas nem munições. "É um combate que consome por dentro", principalmente quando a vontade e o saber não chegam para salvar a vida que se tem pela frente. "Tudo isto vai ficando registado aqui no disco rígido. E o acumular de situações deixa traumas", reconhece este bombeiro, também tripulante de ambulância e, por isso, familiarizado com os limites da vida.
Foi ao quarto dia de um fogo sem tréguas que a chamada caiu no quartel dos bombeiros, onde agora, sentado à secretária, faz a retrospectiva dos acontecimentos. O pedido de duas ambulâncias era para acudir a um acidente grave. "É isto que faço todos os dias, estou habituado. Mas, quando percebi que as vítimas eram bombeiros, disparou a minha ansiedade. No caminho, só pensava se eram conhecidos, como estariam..."
Já na aldeia de Sá, no sopé da serra, soube que as vítimas eram gente de fora que ajudava a proteger a freguesia de Carvalhais, onde até a evacuação do Festival Andanças foi equacionada. "Estavam a ser cercados e iam fugir. Não sei como aconteceu. Talvez o condutor não tenha calculado bem a curva", estima, justificando a queda na ribanceira.
Ao transportar o ferido grave para o Hospital de Viseu, Mário só pensava nos seus homens, expostos ao risco. E nos filhos, três gémeos, rapazes de nove anos, que já têm até uma farda em miniatura e sonham com a vida de bombeiro. Agarrado ao telefone, confirmou que estavam todos bem, e pediu-lhes para não se meterem em aventuras, já com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Quando em casa ouviu na televisão o desabafo do comandante da corporação da bombeira que morreu em Gondomar, outra desgraça desta semana, Mário também se emocionou. "Consigo sentir a dor daquele comandante. Põe-se tudo em causa…"
A vítima era uma jovem bombeira de 21 anos. Cristiana Josefa Santos sofreu a morte que os bombeiros mais temem. Traída por uma mudança de vento, acabou cercada pelo fogo, juntamente com cinco colegas. Tentou proteger-se numa valeta, na esperança de que as chamas passassem por cima, mas morreu carbonizada.
Dois dias depois do acidente, e após uma terça-feira calma, apenas com pequenos focos lá para a serra, junto ao parque eólico da Coelheira, o adjunto de comando sente-se tranquilo. Passou a noite em casa com a mulher, também ex-bombeira, e os filhos Iuri, Rafael e Rúben, a quem vai poupando os pormenores negros da profissão. E a manhã corre sem sobressaltos de maior. Os colegas que mal se cruzam desde sexta-feira andam na rua, a cumprir as outras tarefas que competem aos bombeiros, desde a limpeza de pavimentos, o socorro pré-hospitalar ou o transporte de doentes. Um carro anda para um novo foco em Valadares. Outro lá para cima, para o mesmo fogo que teima em reacender-se. Ora aqui, ora ali, sem causa aparente, como se tivesse vida própria ou fosse alimentado por mãos alheias.
Manuel e Vítor, desde o início na linha da frente com o autotanque, estão no quartel de passagem, e, apesar do cansaço, mostram sinais de motivação. Mário está preocupado com o Benjamim, de apenas 18 anos, que acaba de lhe perguntar para quando a ida ao psicólogo. "Eu já tive duas depressões e sei bem que precisamos deste acompanhamento. E o Vítor já anda desorientado", comenta, lamentando que este serviço tenha de ser suportado pelos próprios.
Por isso, quando o filho Iuri se entusiasma com o serviço do pai, Mário pensa que o melhor era mesmo que este optasse pela carreira militar, tal como ele desejou em tempos. "Se calhar, era o que devia ter feito", pensa em voz alta, ao fim de 14 anos. "Mas a verdade é que não desisto. Já tive outra profissão, mas sei que é isto que gosto de fazer", reconhece, sorrindo. Não acaba uma noite sem ir ao quartel. E mesmo as férias custam a passar.
Pânico e feridos na aldeia do Muro
Outro episódio potencialmente traumático, e que tem de ser resolvido para não causar danos posteriores, foi vivido três dias antes. Num sábado do qual não há memória no concelho, quando o mesmo fogo que matou o bombeiro de Alcobaça começou a fazer estragos a sério. À tarde, o incêndio subia em direcção a Manhouce, ameaçando as casas de Muro, e obrigando a posicionar dois carros ligeiros de São Pedro do Sul e de Penalva do Castelo junto às habitações.
Mário dirigia a operação da estrada para Vilarinho, e, desesperado, pedia reforços ao comando que não os tinha para disponibilizar. Restava aos habitantes ajudar os bombeiros e guardar as casas com os meios que tinham à mão. O helicóptero dava apoio pelo ar e por pouco não se despenhava ali mesmo, relata Mário. "Não conhecemos o inferno, é verdade, nunca lá estivemos, mas não deve ser muito diferente daquilo. Dava a sensação de que o fogo ia engolir a aldeia", conta, em tom sereno, interrompendo a narração para responder à operacional de serviço que quer dar saída de uma viatura para mais um reacendimento.
Quando os dois carros ficaram sem água, retoma o adjunto Mário, ordenou que o tanque da corporação de Santa Cruz da Trapa fosse abastecê-los. "Qual não é o espanto quando ouço uma gritaria, a dizer que havia bombeiros mortos, e vi a população trazê-los em braços. Foi como uma facada no coração. Fiquei em pânico, pois era culpado daquela tragédia", descreve, questionando na hora, e ainda hoje, a opção tomada minutos antes. O motorista vinha desmaiado, queimado na cara e nos braços.
O carro foi completamente devorado pelas chamas, e, apesar das baixas nas tropas, a população foi poupada, bem como a generalidade dos seus bens. Mas até aí se vê a ingratidão das pessoas, lamenta o responsável dos bombeiros, queixando-se de discriminação. "Pensam que somos de ferro e aço. E se hoje somos os maiores, amanhã insultam-nos na rua." Mário não esquece os gritos e a aflição do povo, que já voltou a escutar em sonhos quando descansava no dia seguinte, olho meio aberto, meio fechado. Assim que puder, garante, dará uma palavra de apreço aos colegas feridos e irá ao local avaliar o que correu mal ou o que poderá ser feito no futuro para evitar problemas semelhantes.
Os voluntários feridos neste incidente estão a recuperar, mas não se encontram no quartel dos Bombeiros de Santa Cruz da Trapa, nesta manhã de quarta-feira. Ainda não são dez horas e só Patrícia, a quarteleira, e mais dois voluntários andam por lá. Um comenta as dificuldades logísticas em alimentar tantas centenas de homens no terreno, o que levou a que muitos comessem o almoço à hora do lanche e que as forças faltassem nos momentos mais críticos. Em surdina, ouvem-se também críticas à coordenação dos meios, que ninguém sabe ao certo onde se encontram nem o que andam a fazer. Ainda meio estremunhada, Patrícia atende uma chamada, que se junta às muitas que ali chegaram nos últimos dias a clamar por ajuda. É mais um foco que se reacende e prepara para cobrir de negro encostas ainda verdes. Desta vez, na Landeira.
Para aí segue a equipa de cinco operacionais, entretanto chegada no quartel para imediatamente voltar a sair. É uma mulher que comanda o grupo de primeira intervenção, os chamados GPI que nos meses de Verão são pagos pelo Estado para assegurar que o combate ao fogo não fica à mercê da generosidade dos voluntários. À beira da estrada, a situação é avaliada e o comando informado.
As chamas baixas nem perturbam os aldeões que, ao som de música religiosa, comemoram as festividades de Santa Susana. Na véspera foram precisas duas buzinadelas no centro da aldeia para desfocar a atenção da festa e focá-la no fogo que vinha a descer.
Ao telefone, o presidente da Câmara de São Pedro do Sul sublinha que a dimensão da área florestal, 70% do total do concelho, faz do Verão uma época constante de sobressaltos. E vai fazendo contas aos estragos de cinco dias de fogo. "Estimamos que tenham ardido quatro mil hectares de floresta, entre baldios das juntas, povoamentos das celuloses e particulares", diz António Carlos Figueiredo. Mas o autarca, que regressa de Alcobaça, aonde foi ao enterro do bombeiro morto na sua terra, sabe que os números já estarão desactualizados quando pisar de novo o concelho. O calor voltou a atear o lume e as chamas, que já andaram na serra, poupando as aldeias, aproximam-se perigosamente de Lourosa da Trapa.
Fogo cerca aldeia ao sexto dia
"Já vai no alto da Tia Albertina. De certeza que já vai nas cinco casas que há no mato", prevê Arminda, empoleirada na caixa de um camião, fixando o olhar nas lambras que descem a voar a encosta, e puxando a filha Bárbara para a sua beira. Elsa tenta pelo telemóvel arrancar notícias aos familiares que lutam contra o fogo. "O que fazem aí?", diz, lembrando-se da vizinha acamada.
O pânico instalou-se no cruzeiro que funciona como rotunda improvisada onde carros de Queluz e Mafra, desterrados há mais de dois dias sem ordem de voltar para casa, passam a rasgar em direcção a ruas estreitas, muradas de ambos os lados. Crianças choram, idosos lançam as mãos ao céu clamando por ajuda divina e mulheres dirigem palavras aflitas em francês.
Um bombeiro recebe ordens para reunir a aldeia no cruzeiro, não deixando ninguém sair, porque o fogo que vem de cima vai mudar de rumo. "Vai rodear mas não vai entrar. A aldeia está a ser protegida", tenta explicar, lançando ainda mais a aflição.
O ronco do lume a engolir os eucaliptos é assustador, e até faz crer que um helicóptero se aproxima. Ao precipitar-se sobre as casas, cobre o sol e o céu, substituindo-os por um fumo negro de impor respeito. Aqui o fogo é visto como o demónio, monstro de corpo e alma, que recorrentemente entra pela vida da gente adentro. Foi assim no 15 de Agosto, há 20 anos. Volta a ser hoje, ameaçando superar a sua fama destruidora.
"Só este gajo é que limpa isto", atira Hermínio Mendes, irónico, referindo-se ao fogo e à falta de limpeza da mata que lhe ameaça a casa. O fumo branco prova que aqui o pior já passou. E os bombeiros, de sorriso agradecido e barriga confortada pelos petiscos oferecidos pelo povo, seguem para outra frente, deixando-lhe o rescaldo nas mãos. O fogo percorre o trajecto antevisto. Depois de ameaçar a aldeia por cima, rodeia-a pela esquerda, lançando mais pânico. Meia hora depois, populares apercebem-se de nova frente, capaz de queimar o que há por arder.
Populares ajudam a combater o fogo em Vila Nova de Tázem, Gouveia. Foto: Paulo Novais/Lusa
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