Alberto Gonçalves
Se tudo ficar secreto e os deixarmos à
vontade com os seus alvos, os terroristas acabam por desistir. Isto se antes
não acabarem os alvos, e desistirmos nós. Em qualquer dos casos, é assunto
arrumado.
A divulgação das proezas do
terrorismo islâmico exige uma considerável quantidade de burocracia. A mera
descrição desta exige fôlego e paciência, pelo que conto com o empenho do
leitor. Vamos a isso? Vamos.
Sempre que meia dúzia de
transeuntes são trucidados numa cidade europeia, a primeira fase consiste em
proclamar que nada indica tratar-se de um ato terrorista.
Numa segunda fase, aceita-se
que, se calhar, até foi um ato terrorista.
A terceira fase implica
atribuir a matança exclusivamente à arma utilizada, seja um pechisbeque
explosivo, uma faca ou um camião (a frase “camião abalroa xis pessoas”
tornou-se um clássico do jornalismo cauteloso e da dissimulação).
Na quarta fase, descobre-se,
não sem algum espanto, que o explosivo, a faca ou o camião tinham alguém a
manobrá-los, embora haja pressa em adiantar que as motivações do manobrador
permanecem obscuras.
Na quinta fase, o espanto
redobra quando se percebe que o nome do homicida é Abdullah, Ahmed, Ali, Assan,
Atwah, Aymen (noto que ainda não chegamos aos “bb”) ou algo com ressonância
pouco latina, anglo-saxónica ou asiática.
A sexta fase envolve um
questionário aos conhecidos de Abdullah, que o caracterizam como uma joia de
rapaz.
Na sétima fase, suspeita-se
que a joia afinal viajara recentemente para a Síria e participava em “sites” de
ligeira influência “jihadista”, onde jurava matar os infiéis que se lhe
atravessassem à frente (uma promessa literal no caso da utilização de camiões).
A oitava fase decide que
Abdullah se “radicalizara”, ou seja, jurara devoção ao Estado Islâmico, a que
chamamos Daesh só por pirraça.
A nona fase estabelece que
Abdullah, ele mesmo um infeliz afetado por distúrbios psiquiátricos ou
discriminação social ou ambos em simultâneo, não representa o islão, por muito
que o próprio afirme aos berros o contrário.
A décima fase é essencial: aos
tremeliques, o poder político declara que nunca cederá ao medo; os jornais
desenham capas giras e vagas a propósito; o povo sai à rua a cantar o “Imagine”
ou fica no Facebook a “solidarizar-se” com as vítimas sem referir os culpados.
Talvez para evitar esta
trabalheira, certa escola de “pensamento” propõe com crescente insistência uma
nova forma de noticiar o terrorismo islâmico: além de se negar que é islâmico,
convém nem sequer noticiar o terrorismo. O argumento é o de que a informação
sobre um atentado serve os interesses de quem o comete. Parece-me razoável,
cabendo apenas aos editores sérios escolher se, doravante, responsabilizam o
explosivo/faca/camião, ou sugerem que os mortos tombaram graças a forças
sobrenaturais ou simplesmente não tocam no tema e aproveitam espaço precioso
para debater o vídeo-árbitro.
Há, nisto, uma vantagem e um
problema. O problema de reescrever o presente é a necessidade de, em prol da
coerência, reescrever o passado. Urge lançar uma multidão de revisores para
cima dos livros de História, dado que, daqui para a frente (ou para trás, para
ser exato), as cinzas em Auschwitz foram o resultado de combustão espontânea, o
canibalismo na URSS deveu-se a péssimas empresas de “catering” e a escravatura
resumiu-se à vontade dos africanos em conhecer o mundo. O fundamental é não
propagandear ideais nazis, comunistas ou supremacistas em geral.
Já a vantagem de reescrever o
presente é a simplicidade em reescrever o futuro: de modo a não publicitar a
toleima dos autores, os crimes “ideológicos” passam a dispor de autoria
indeterminada ou, preferencialmente, autoria nenhuma. Imagine-se que dezenas de
gays são baleados numa marcha orgulhosa. Falar em homofobia seria prestar um
favor ao assassino, cujas razões – cito um defensor do “blackout” informativo –
não importam e não merecem ser conhecidas. A imensa maioria dos homofóbicos é
gente moderada e de paz, que guarda as convicções na esfera íntima e não maça
ninguém. Dizer que a aversão à homossexualidade originou a chacina é – cito
outra defensora do “blackout” – usá-la para legitimar “malfeitores” e
“delinquentes”.
Por enquanto, porém, os apelos
às restrições noticiosas limitam-se ao terrorismo, perdão, à delinquência. A
cargo de muçulmanos, perdão, malfeitores. E começam a funcionar. Nos últimos
oito dias, o público teve dificuldades em saber a identidade do malfeitor de
Estocolmo. E não soube de todo que, desde então, malfeitores similares
praticaram delinquências idênticas na Austrália, na Rússia e na Alemanha, além
de uma série de países “exóticos” (total de mortos: 172). Assim é que é bonito:
há que manter estas coisas em segredo e não dar aos terroristas o gozo de
repararmos neles. Se os deixarmos à vontade com os seus alvos, os terroristas
acabam por desistir. Isto se antes não acabarem os alvos, e desistirmos nós. Em
qualquer dos casos, é assunto arrumado.
Nota de rodapé:
Entre nós, as reservas
informativas não se esgotam na questão do terrorismo. Também a Venezuela, por
exemplo, sumiu misteriosamente da generalidade dos “media” caseiros. E o que se
passa na Venezuela? Ao que apurei, há uma “campanha de intoxicação da opinião
pública veiculada pelos órgãos de comunicação social dominados pela direita,
nomeadamente no que diz respeito às chamadas crises alimentar e política”. Há
“ações criminosas em torno do abastecimento de bens essenciais e da especulação
com os preços e a moeda nacional”. Há, claro, “as manobras do imperialismo
norte-americano com o objetivo de derrubar o governo liderado por Nicolás
Maduro e fazer regressar as maiores reservas mundiais de petróleo ao redil dos
EUA”. Mas, acima de tudo, há “unidade cívico-militar” e “raízes profundas da
Revolução Bolivariana entre as massas populares”. Isto, pelo menos, é o que diz
o “Avante!”, dos raros jornais a tocar no assunto.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
15-4-2017
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