Silvana Lagoas
O DREX nasceu
com ares de revolução: a versão digital do real, inteligente, rastreável e
moderna, vendida como o próximo salto do sistema financeiro brasileiro. O Banco
Central prometia segurança, inovação e inclusão. Tudo soava impecável até o
projeto ser suspenso.
Oficialmente, o motivo foi
técnico: a plataforma usada, uma blockchain chamada Hyperledger Besu, não
cumpria os padrões de privacidade e segurança exigidos. Mas, na prática, a
explicação parece mais psicológica do que tecnológica. O Estado brasileiro, habituado
a vigiar sem ser vigiado, descobriu o desconforto de quem é observado.
A tecnologia indiscreta
A ideia era simples: cada
unidade de DREX valeria o mesmo que um real. Só que, em vez de circular entre
bancos tradicionais, existiria num registo digital partilhado, uma base de
dados que tudo anota e nada esquece.
Nos testes, as instituições
financeiras perceberam que o sistema revelava mais do que gostariam: fluxos de
dinheiro, contratos, liquidações, até movimentações públicas. E foi aí que
começaram as dúvidas.
A blockchain, por natureza, é
transparente e imutável; o sistema financeiro brasileiro, por hábito, é opaco e
hierárquico. Resultado: tecnologia e cultura colidiram de frente. O Banco
Central falou em “ajustes de privacidade” e “questões de sigilo bancário”, mas
a verdade é que a plataforma mostrava demais e a classe política brasileira não
lida bem com transparência.
O discurso da privacidade e
o poder do sigilo
O sigilo bancário no Brasil é uma ficção jurídica. O Estado tem acesso quase total às contas dos cidadãos: a Receita cruza rendimentos automaticamente, o COAF rastreia transferências suspeitas e o PIX transformou o dinheiro num trilho de dados.
O que resta de “privacidade” é
apenas um ritual retórico. Enquanto o cidadão tem a sua vida escrutinada, o
poder favorece-se de sigilos, por vezes seculares. Invoca-se a privacidade não
para proteger o indivíduo, mas para preservar o privilégio.
A privacidade serve ao topo,
nunca à base. É o manto que cobre a promiscuidade entre Estado e finança, entre
público e privado.
É nesse cenário que o DREX se
torna incómodo. Uma moeda digital rastreável permitiria seguir não só o
dinheiro do contribuinte, mas também o dinheiro do Estado, e é aí que o
entusiasmo acaba.
Quem deve ser vigiado
O argumento oficial é simples:
a rastreabilidade serve para combater a evasão e a fraude. Justo. Mas, se a
transparência é virtude, por que é que só o cidadão deve ser transparente?
Num país onde o dinheiro
público se evapora entre camadas de sigilo institucional e offshores
respeitáveis, a verdadeira revolução seria outra: tornar públicas as transações
do Estado, não as do indivíduo.
O cidadão tem direito à
privacidade até cometer uma ilegalidade. O Estado, pelo contrário, tem
obrigação de transparência por princípio.
No entanto, o Brasil continua
a praticar a assimetria perfeita: o cidadão é vigiado preventivamente, enquanto
o poder age protegido por cláusulas, confidencialidades e razões de segurança
nacional.
Transparência, aqui, é sempre
de baixo para cima.
A presunção de culpa
preventiva
A tecnologia trouxe uma
inversão silenciosa: quem acusa já não precisa provar, quem vive é que tem de
justificar.
Cada operação financeira é uma
microconfissão: transferências exigem explicação, rendimentos pedem
comprovativo, movimentações despertam alertas automáticos.
Não há acusação formal, mas há
suspeita permanente. O cidadão passou a ter de provar inocência sem sequer
saber do que é acusado.
O DREX, como toda moeda
digital estatal, levaria essa cultura de suspeita ao seu grau máximo: um
dinheiro que observa, regista e reporta, o sonho de qualquer burocracia
preventiva.
E o que se anuncia como
modernidade é, na verdade, uma nova forma de vigilância, silenciosa,
algorítmica e sem rosto.
“Num Estado saudável, a prova
cabe a quem acusa. Num Estado doente, todos são acusados de antemão, e a
inocência torna-se um privilégio, não um direito.”
O DREX não seria apenas a
moeda do futuro, mas o recibo do presente: um país que confunde transparência
com vigilância.
O espelho que o poder não
quis encarar
Talvez o DREX não tenha sido
suspenso por falhas técnicas, mas por ter mostrado demais. Num país em que a
opacidade é instrumento de governo, a transparência é vista como ameaça.
O projeto não fracassou por
defeito de código, mas por excesso de reflexo. O DREX expôs o que o poder
prefere manter fora do campo de visão: a possibilidade de um dinheiro público
verdadeiramente rastreável e, portanto, incontornável.
O Brasil não desistiu do DREX;
desistiu do espelho. Porque um dinheiro que não mente poderia revelar mais do
que o sistema está disposto a admitir.
Título, Imagem e Texto: Silvana Lagoas, (mãe a tempo inteiro, autodidata, livre pensadora), ContraCultura, 8-11-2025

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