sábado, 8 de novembro de 2025

DREX: o medo da transparência total ou quando a moeda fala demais

Silvana Lagoas

DREX nasceu com ares de revolução: a versão digital do real, inteligente, rastreável e moderna, vendida como o próximo salto do sistema financeiro brasileiro. O Banco Central prometia segurança, inovação e inclusão. Tudo soava impecável até o projeto ser suspenso.

Oficialmente, o motivo foi técnico: a plataforma usada, uma blockchain chamada Hyperledger Besu, não cumpria os padrões de privacidade e segurança exigidos. Mas, na prática, a explicação parece mais psicológica do que tecnológica. O Estado brasileiro, habituado a vigiar sem ser vigiado, descobriu o desconforto de quem é observado. 

A tecnologia indiscreta

A ideia era simples: cada unidade de DREX valeria o mesmo que um real. Só que, em vez de circular entre bancos tradicionais, existiria num registo digital partilhado, uma base de dados que tudo anota e nada esquece.

Nos testes, as instituições financeiras perceberam que o sistema revelava mais do que gostariam: fluxos de dinheiro, contratos, liquidações, até movimentações públicas. E foi aí que começaram as dúvidas.

A blockchain, por natureza, é transparente e imutável; o sistema financeiro brasileiro, por hábito, é opaco e hierárquico. Resultado: tecnologia e cultura colidiram de frente. O Banco Central falou em “ajustes de privacidade” e “questões de sigilo bancário”, mas a verdade é que a plataforma mostrava demais e a classe política brasileira não lida bem com transparência. 

O discurso da privacidade e o poder do sigilo

O sigilo bancário no Brasil é uma ficção jurídica. O Estado tem acesso quase total às contas dos cidadãos: a Receita cruza rendimentos automaticamente, o COAF rastreia transferências suspeitas e o PIX transformou o dinheiro num trilho de dados.

O que resta de “privacidade” é apenas um ritual retórico. Enquanto o cidadão tem a sua vida escrutinada, o poder favorece-se de sigilos, por vezes seculares. Invoca-se a privacidade não para proteger o indivíduo, mas para preservar o privilégio.

A privacidade serve ao topo, nunca à base. É o manto que cobre a promiscuidade entre Estado e finança, entre público e privado.

É nesse cenário que o DREX se torna incómodo. Uma moeda digital rastreável permitiria seguir não só o dinheiro do contribuinte, mas também o dinheiro do Estado, e é aí que o entusiasmo acaba. 

Quem deve ser vigiado

O argumento oficial é simples: a rastreabilidade serve para combater a evasão e a fraude. Justo. Mas, se a transparência é virtude, por que é que só o cidadão deve ser transparente?

Num país onde o dinheiro público se evapora entre camadas de sigilo institucional e offshores respeitáveis, a verdadeira revolução seria outra: tornar públicas as transações do Estado, não as do indivíduo.

O cidadão tem direito à privacidade até cometer uma ilegalidade. O Estado, pelo contrário, tem obrigação de transparência por princípio.

No entanto, o Brasil continua a praticar a assimetria perfeita: o cidadão é vigiado preventivamente, enquanto o poder age protegido por cláusulas, confidencialidades e razões de segurança nacional.

Transparência, aqui, é sempre de baixo para cima. 

A presunção de culpa preventiva

A tecnologia trouxe uma inversão silenciosa: quem acusa já não precisa provar, quem vive é que tem de justificar.

Cada operação financeira é uma microconfissão: transferências exigem explicação, rendimentos pedem comprovativo, movimentações despertam alertas automáticos.

Não há acusação formal, mas há suspeita permanente. O cidadão passou a ter de provar inocência sem sequer saber do que é acusado.

O DREX, como toda moeda digital estatal, levaria essa cultura de suspeita ao seu grau máximo: um dinheiro que observa, regista e reporta, o sonho de qualquer burocracia preventiva.

E o que se anuncia como modernidade é, na verdade, uma nova forma de vigilância, silenciosa, algorítmica e sem rosto.

“Num Estado saudável, a prova cabe a quem acusa. Num Estado doente, todos são acusados de antemão, e a inocência torna-se um privilégio, não um direito.”

O DREX não seria apenas a moeda do futuro, mas o recibo do presente: um país que confunde transparência com vigilância. 

O espelho que o poder não quis encarar

Talvez o DREX não tenha sido suspenso por falhas técnicas, mas por ter mostrado demais. Num país em que a opacidade é instrumento de governo, a transparência é vista como ameaça.

O projeto não fracassou por defeito de código, mas por excesso de reflexo. O DREX expôs o que o poder prefere manter fora do campo de visão: a possibilidade de um dinheiro público verdadeiramente rastreável e, portanto, incontornável.

O Brasil não desistiu do DREX; desistiu do espelho. Porque um dinheiro que não mente poderia revelar mais do que o sistema está disposto a admitir.

Título, Imagem e Texto: Silvana Lagoas, (mãe a tempo inteiro, autodidata, livre pensadora), ContraCultura, 8-11-2025 

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