domingo, 20 de fevereiro de 2011

Mais forte do que dizer «namorado» é dizer «o meu amante».

Há amigos que amamos tanto como os amantes. Os «amantes» aqui não têm de ser os clandestinos. Podem ser, mas eu gosto de chamar amantes aos que amamos e os que queremos que sejam nossos. Os que consumimos de desejo e paixão. Mais forte do que dizer «namorado» é dizer «o meu amante».
Ilustração: Sofia Dias
Sim, há amigos que eu amo como se fossem amantes. Mas sem sexo. O sexo às vezes distingue-nos - só para isto não parecer uma imensa orgia desfasada. Eu amo alguns amigos e o que sinto por eles é tão ou mais forte do que se tivéssemos sexo. Quer dizer, nós podíamos ter ido para a cama, mas sentíamos que isso poderia ser pouco, ou poderia ser coisa do momento, enquanto uma amizade, às vezes, é para a vida. Há nesse cruzamento de amizade e amor uma nesga para o sexo e os que conseguem escapar nem sempre se arrependem. Também poderemos pensar se assim não estaremos a perder o amor das nossas vidas?! Eu, optimista nestas matérias do coração (as que realmente interessam), prefiro pensar que estamos sempre a tempo de viver um amor feliz.

Um desses amigos (que deixa o meu namorado quase com ciúmes) separou-se há algum tempo da sua mulher. E vive atormentado com o que ela não lhe dá, mantendo-o no entanto preso no limbo do amor.
Este limbo do amor é o lugar onde os egoístas e fracos persistem em viver. Os que amam deixam-se apanhar nesse limbo como se fosse um mar cheio de algas muito escuras e escorregadias. Eles não sabem o que lá está, mas ainda assim vão. Não conseguem não ir.
O meu amigo - que eu amo verdadeiramente, já entrou nesse mar escuro muitas vezes. E mede forças com ele. Como se às vezes fosse arrastado sem querer. Vai, molha-se, fica triste e pesaroso, sai de lá sozinho e depois demora muito tempo a limpar-se daquilo. Como se ela, a sua ex-mulher, fosse uma sereia sedutora e ao mesmo tempo pérfida que o arrasta para um sítio de onde ele vai sair triste. (Não foi destas sereias que falou Sophia de Mello Breyner.)
A mim custa-me vê-lo ir. E digo-lhe que amar não é isto. O amor não é quando fazem de nós sobras. O amor tem de ser muito para lá disto. Porque neste lugar de fraqueza onde todos vamos parar por vezes é preciso ser maior que essa vulnerabilidade e deixar partir quem um dia amámos.
Ver o meu amigo acreditar de cada vez que ela o chama (não é o amor que o chama, é ela) faz-me doer o coração. Porque o nosso coração também dói quando o dos nossos amigos sofre.
Eu acredito muito no amor depois do amor. O que é grande e vê tão claramente que alguém que quisemos para sempre, tem de ser do coração para sempre, mesmo quando a cabeça (ou o sexo?) já não o quer.
Temos de deixar partir as pessoas que um dia amámos e que já não preenchem. Elas são quase aquelas por quem um dia nos apaixonámos, mas é o desejo (ou outra coisa qualquer) que já não permite que as amemos. Então, temos de as deixar ir. Para que possam viver outros amores, guardando-nos na mesma, para sempre.
O mais fácil, o mais tentador, é recorrer a elas quando o gás faltou em casa, ou ficámos doentes, ou o nosso novo amor não nos deu notícias. Em todas estas alturas de vulnerabilidade, o limbo recomeça e os que ainda nos amam respondem prontamente ao chamamento.
Depois, quando os outros já estão outra vez fortes, olham para nós com ternura (e, para quem estão apaixonados, com desejo) e voltam a deixar-nos. Para tudo recomeçar: a ansiedade, o vazio, a dor.
A ternura é um lugar estanque. Não se brinca com isto. Muito menos com o amor de quem cuidou de nós.
Todas as pessoas que nos fazem cair neste limbo, mais tarde ou mais cedo, tornar-se-ão vítimas do que criaram.
E eu só sei isto porque já estive dos dois lados da barricada.
Oh God, make me good, but not yet!
Cidália Dias, Diário de Notícias, 18-02-2011

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