Há amigos que amamos tanto como os amantes. Os «amantes» aqui não têm de ser os clandestinos. Podem ser, mas eu gosto de chamar amantes aos que amamos e os que queremos que sejam nossos. Os que consumimos de desejo e paixão. Mais forte do que dizer «namorado» é dizer «o meu amante».
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Ilustração: Sofia Dias |
Sim, há amigos que eu amo como se fossem amantes. Mas sem sexo. O sexo às vezes distingue-nos - só para isto não parecer uma imensa orgia desfasada. Eu amo alguns amigos e o que sinto por eles é tão ou mais forte do que se tivéssemos sexo. Quer dizer, nós podíamos ter ido para a cama, mas sentíamos que isso poderia ser pouco, ou poderia ser coisa do momento, enquanto uma amizade, às vezes, é para a vida. Há nesse cruzamento de amizade e amor uma nesga para o sexo e os que conseguem escapar nem sempre se arrependem. Também poderemos pensar se assim não estaremos a perder o amor das nossas vidas?! Eu, optimista nestas matérias do coração (as que realmente interessam), prefiro pensar que estamos sempre a tempo de viver um amor feliz.
Um desses amigos (que deixa o meu namorado quase com ciúmes) separou-se há algum tempo da sua mulher. E vive atormentado com o que ela não lhe dá, mantendo-o no entanto preso no limbo do amor.
Este limbo do amor é o lugar onde os egoístas e fracos persistem em viver. Os que amam deixam-se apanhar nesse limbo como se fosse um mar cheio de algas muito escuras e escorregadias. Eles não sabem o que lá está, mas ainda assim vão. Não conseguem não ir.
O meu amigo - que eu amo verdadeiramente, já entrou nesse mar escuro muitas vezes. E mede forças com ele. Como se às vezes fosse arrastado sem querer. Vai, molha-se, fica triste e pesaroso, sai de lá sozinho e depois demora muito tempo a limpar-se daquilo. Como se ela, a sua ex-mulher, fosse uma sereia sedutora e ao mesmo tempo pérfida que o arrasta para um sítio de onde ele vai sair triste. (Não foi destas sereias que falou Sophia de Mello Breyner.)
A mim custa-me vê-lo ir. E digo-lhe que amar não é isto. O amor não é quando fazem de nós sobras. O amor tem de ser muito para lá disto. Porque neste lugar de fraqueza onde todos vamos parar por vezes é preciso ser maior que essa vulnerabilidade e deixar partir quem um dia amámos.
Ver o meu amigo acreditar de cada vez que ela o chama (não é o amor que o chama, é ela) faz-me doer o coração. Porque o nosso coração também dói quando o dos nossos amigos sofre.
Eu acredito muito no amor depois do amor. O que é grande e vê tão claramente que alguém que quisemos para sempre, tem de ser do coração para sempre, mesmo quando a cabeça (ou o sexo?) já não o quer.
Temos de deixar partir as pessoas que um dia amámos e que já não preenchem. Elas são quase aquelas por quem um dia nos apaixonámos, mas é o desejo (ou outra coisa qualquer) que já não permite que as amemos. Então, temos de as deixar ir. Para que possam viver outros amores, guardando-nos na mesma, para sempre.
O mais fácil, o mais tentador, é recorrer a elas quando o gás faltou em casa, ou ficámos doentes, ou o nosso novo amor não nos deu notícias. Em todas estas alturas de vulnerabilidade, o limbo recomeça e os que ainda nos amam respondem prontamente ao chamamento.
Depois, quando os outros já estão outra vez fortes, olham para nós com ternura (e, para quem estão apaixonados, com desejo) e voltam a deixar-nos. Para tudo recomeçar: a ansiedade, o vazio, a dor.
A ternura é um lugar estanque. Não se brinca com isto. Muito menos com o amor de quem cuidou de nós.
Todas as pessoas que nos fazem cair neste limbo, mais tarde ou mais cedo, tornar-se-ão vítimas do que criaram.
E eu só sei isto porque já estive dos dois lados da barricada.
Oh God, make me good, but not yet!
Cidália Dias, Diário de Notícias, 18-02-2011
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