domingo, 27 de fevereiro de 2011

Alucinações no deserto

Imagen: Kevansue, 2002
Alberto Gonçalves
O que se pode dizer acerca do Egipto? Pode dizer-se que os protestos públicos de um ou dois octogésimos da população bastaram para derrubar um ditador caduco. E que os gritos dos manifestantes em prol da democracia não anulam o facto, evidente em sondagens recentes, de que a esmagadora maioria dos indígenas exige a imposição da sharia. E que o apoio do Irão, do Hamas e da Irmandade Muçulmana à sublevação talvez seja um melhor indicador do rumo daquela do que o aval atarantado do Ocidente. E que convém pensarmos duas (ou três) vezes antes de festejar a futura “democracia” local como uma paisagem de bem-estar e prosperidade.

Isto tudo, claro, se formos objectivos e contidos, inclinações hoje escassas. O estilo de jornalismo em voga troca a objectividade e a contenção pela parcialidade e a verborreia. No caso egípcio, então, a efervescência poética roçou, e às vezes ultrapassou, o anedótico. No Cairo ou na escrivaninha da redacção, inúmeros correspondentes dos nossos media decidiram enterrar a ética e o discernimento e partilhar a alegria da “rua árabe”, que imensas alegrias nos dá. A certa altura, a coisa transformou-se num concurso para escolher o correspondente mais eufórico.

Não sei quem ganhou, mas sei que Paulo Moura é um candidato de peso, já que as páginas do Público se mostram acanhadas para acolher tamanho entusiasmo lírico. No texto publicado após a queda de Mubarak, originalmente intitulado O dia em que a multidão foi maior do que o Cairo, Paulo Moura abre logo com um paradoxo: “Venceram. Era impossível, mas venceram.” Daí em diante, ninguém o segura.

Há os “sorrisos estranhos, que parecem brotar de uma nascente lídima e cristalina da consciência humana.” Há o “organismo desmesurado e vivo, a revolver-se de júbilo, como uma crisálida em plena transformação”. Há a rapariga de “olhar negro e intenso como o de uma sacerdotisa de Ísis”. Há a “energia” que “aumenta, se redobra, como se a felicidade precisasse do seu tempo para correr nas veias”. Há o islão que “transportou a luz que abriu espaço para o Renascimento e o Iluminismo na Europa”. Há os jovens amotinados no Facebook que “captaram sinais invisíveis como os místicos sufis” e “puxaram pelos galões de sete mil anos de civilização” e “misturaram o melhor de todos os mundos” e “ouviram Umm Kulthum cantar Blowing in the Wind no deserto” e “ergueram a sua própria Sierra Maestra no ciberespaço” e “criaram um delta de comunicação, capilar, fresco e fecundo”. Etc.

É complicado apurar se estes relatos correspondem a um acontecimento social ou a uma experiência psicadélica. Francamente: Paulo Moura tem no bolso uma carteira profissional ou encontra-se apenas deleitado face aos ensinamentos do Profeta? É com ele, de resto irremediavelmente perdido numa Sierra Maestra mental. O problema é ele, apesar de levar a excitação a extremos raros, não ser o único excitado. A disenteria sentimental tomou conta da vasta maioria dos comentários nacionais e internacionais da situação egípcia e, sob a disenteria, saltita uma convicção tão velha quanto absurda: a de que a liberdade e a democracia são valores abstractos e independentes das circunstâncias.

Um aroma de liberdade na festa que tomou conta da noite do Cairo. Foto: Suhaib Salem/Reuters
Não vale a pena lembrar os exemplos clássicos em que a liberdade e a democracia serviram medonhos fins, do Terror revolucionário francês até ao nazismo e ao Holocausto. É suficiente notar a forte hipótese de o Egipto livre e democrático dos sonhos se tornar, na prática, um Egipto institucionalmente islâmico. Ou seja, uma ameaça para os seus e, desculpem o egoísmo, parra nós. Inúmeros ocidentais, dos que levam o fascínio pelo “exótico” em função do perigo que o “exótico” representa, desejam essa ameaça. Inúmeros outros convenceram-se genuinamente de que a ideia de “libertação” que, em coabitação com um neurónio, mora nas suas cabeças é idêntica à que ocupa as cabeças do povo egípcio.

Não necessariamente. Indiferente à má ou à óptima fé dos estrangeiros que o aplaudem, o povo que reivindica nas ruas o direito à felicidade parece, em larga medida e a acreditar nos estudos de opinião, o mesmo povo que reivindica o direito à excisão feminina (que Mubarak baniu em 2007) ou à lapidação das adúlteras (que Mubarak proibia). E é o mesmo povo que, na extraordinária percentagem de 20% e a acreditar nos mesmos inquéritos, defende os atentados terroristas.

Admito, no domínio dos milagres, que também haja a hipótese de as coisas correrem bem e o país deslizar com suavidade para um modelo razoavelmente equilibrado e pacífico. Porém, acho pouquíssimo provável. Se estiver enganado, prometo reconhecer o erro e celebrá-lo com frenesim. Se for Paulo Moura a enganar-se, espero que se envergonhe da celebração precoce e, em nome da coerência, escreva com a habitual paixão sobre a primeira mutilação genital no primeiro bombista patrocinados pelo próximo e decerto radioso regime egípcio.

Só lhe peço que, ao descrever o sofrimento da mutilada, não repita a alusão aos deltas capilares e que, ao descrever os cadáveres, não repita a imagem da crisálida em plena transformação. Afinal, quando a realidade não nos detém, os desvarios e as metáforas disponíveis são ilimitados. 
Título e Texto: Alberto Gonçalves, revista Sábado, nº 355, 17 a 23 de Fevereiro de 2011
Digitação e Edição: JP

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