José Manuel Fernandes
Ao
querer parlamentarizar ainda mais o regime e ao derivar para uma linguagem
radical, se não de ódio, o PS leva-nos de regresso à I República. Um dia ainda
confundimos António Costa com Afonso Costa.
As duas últimas intervenções
públicas de António Costa – uma entrevista na RTP na segunda-feira e uma
intervenção numa reunião de militantes em Setúbal na terça-feira – revelam um
líder inquieto. Um homem tranquilo não sentiria necessidade de se lançar numa
campanha pública contra o Presidente da República: aguardaria, com
naturalidade, que este o chamasse a formar Governo. O líder político que
necessitou de 34 dias para costurar os mais desconchavados “acordos” políticos
de que há memória – e estou a ser generoso ao utilizar a palavra “acordos”,
mesmo que entre aspas –, dá sinais de desconforto e começa a mostrar uma
arrogância ainda maior do que a habitual.
Devo dizer que compreendo a
razão do nervosismo de Costa. Cada dia que passa torna-se mais claro que as
coisas não estão a correr como imaginou, cada hora que passa desafia a sua
percepção de que é um homem predestinado a quem todos devem render homenagem.
É evidente que o primeiro
grande problema de António Costa foi perder as eleições. Porque foi mesmo isso
que aconteceu a 5 de Outubro. Ele começou por exigir ser líder do PS para levar
o partido à maioria absoluta – nunca as sondagens o colocaram perto disso. A
seguir pensou que era impossível o PS não ganhar as eleições, pois nunca em
Portugal um Governo tivera de aplicar um programa tão duro como o do
ajustamento imposto pela bancarrota – mas a certa altura começou a perceber que
o PS podia ficar atrás da coligação. Agarrou-se então a uma outra bóia de
salvação: mesmo perdendo as eleições para a coligação, podemos dizer que
ganhámos se tivermos mais deputados do que o PSD – mas também aí o cálculo lhe
saiu furado. Sobrou uma esperança: que a soma dos deputados do PS e do Bloco
ficasse acima dos da coligação. Também isso os portugueses lhe negaram nas
urnas. Nessa altura percebeu que estava nas mãos do PCP se não quisesse ser
corrido, naquela mesma hora, do Largo do Rato.
A forma como chegou às três
“declarações” a que chamou acordos foi patética. Deixou que Catarina Martins
reclamasse para si os louros de tudo o que era mais popular, mas não se livrou
do opróbrio de manter o cinto bem apertado (haverá hipocrisia maior do que
referir-se ao virar da página da austeridade quando se vai dar um aumento
inferior a um euro por mês aos reformados com as pensões mais baixas, sobretudo
de a pensão mínima ter aumento 2,6 euros este ano?). Ao mesmo tempo, garantiu
ao PCP os mínimos para este não fazer cair um seu possível governo de imediato
(é indispensável ler o ensaio de
Vítor Bento em que este explica a lógica da forma de actuar dos comunistas).
Por fim prestou-se ao ridículo de uma assinatura às escondidas de documentos
que não asseguram nem estabilidade (nem sequer garantem a aprovação do
Orçamento de 2016!), nem o cumprimento dos compromissos internacionais de
Portugal (um tema totalmente omisso), nem são coerentes.
Como se tudo isto não fosse
suficiente, o líder do PS predispôs-se a desfigurar o seu programa eleitoral,
retirando-lhe toda a lógica interna, tornando-o num pequeno Frankenstein que
nem lhe permitiu apresentar na última página quadros minimamente coerentes,
apenas uma charada que Mário Centeno admite ter resultado da “bimby” de um dos
seus colaboradores. Sendo que não se mostra lá o essencial: as projecções para
o crescimento económico, sem as quais tudo o resto faz, ou não faz, sentido. O
que também se compreende: acrescentar esses números seria deixar o gato com o
rabo de fora, isto é, que as famosas “contas” com que António Costa quis
restaurar a credibilidade económica do “partido da bancarrota” são pouco mais
do que uma ficção cheia de boas intenções mas muito pouco sustento.
Tudo isto seria mais do que
suficiente para que Costa, se fosse uma pessoa modesta e sem necessidade de
salvar a própria pele, tratasse de, com alguma humildade, garantir que iria
tentar fazer o melhor que estivesse ao seu alcance para que a geringonça que
montou não se desconjuntasse ao mínimo solavanco.
Mas não – porque é da sua
natureza e porque cada dia que passa acrescenta mais um elemento para percebermos
a fragilidade da construção. Ainda os novos deputados não se acomodaram aos
seus gabinetes, e já foram entregues pela extrema-esquerda uma montanha de
projectos de lei que parecem não ter outro objectivo senão o de por à prova a
solidez da “aliança”. Primeiro foram iniciativas sobre o feriado do Carnaval, a TAP, a Refer, a CP Carga e os transgénicos,
agora é a fidelização nos contratos de telemóvel.
Está ainda mais há vista o evidente: a “solução estável e consistente” de que
António Costa está sempre a falar estará sempre submetida ou à chantagem, ou
aos humores, da extrema-esquerda, em especial de um PCP que, cumpridos os seus
objectivos mínimos – preservar o poder da CGTP – deixará de ter qualquer motivo
para se manter a bordo, sobretudo se, como vai acontecer, as miraculosas contas
de Centeno esbarrarem na realidade e numa ausência de crescimento económico
que, na Europa, se está a tornar endémica, como ainda agora se explicava no Wall Street Journal.
Se tudo isto não fosse
suficiente, aquilo que mais perturba António Costa (e o leva a fazer coro com
Jerónimo de Sousa e Catarina Martins) é que o seu futuro próximo não está
verdadeiramente nas suas mãos. Está nas mãos do Presidente.
Na verdade, ao contrário do
que se quer fazer crer, a nossa Constituição não é parlamentarista, é
semi-presidencialista. Por isso é que elegemos o Presidente da República por
voto de todos os cidadãos, e não num colégio eleitoral. Por isso também é que é
este que nomeia o primeiro-ministro, não a Assembleia da República. O artigo
187º da Constituição diz apenas que “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo
Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da
República e tendo em conta os resultados eleitorais”. Não diz que o Presidente
tem de seguir a opinião dos partidos, ou da maioria dos partidos. Mas diz que
tem de “ter em conta os resultados eleitorais”, o que significa que tem a
possibilidade e o dever de os interpretar – e a sua interpretação pode ser
distinta daquela que permitiu a formação da coligação negativa que teve como
ponto único de verdadeiro acordo impedir que a coligação que ganhou as eleições
governasse. Isto é, pode entender que a primeira leitura dos resultados não é
que estes foram “um voto para virar a página da austeridade”, pode antes
considerar, como considera, que foram um voto no sentido de manter Portugal
comprometido com a Europa e com as obrigações do Tratado Constitucional.
Ou seja, o Presidente da
República tem o poder efectivo de nomear o primeiro-ministro, não estando
obrigado a aceitar qualquer coisa que estes lhe levem como solução a Belém.
Isso mesmo já explicou,
com cristalina clareza, o constitucionalista João Pereira Coutinho. Pode, por
exemplo, colocar condições a António Costa, nomeadamente a de ter acordos a
sério, não apenas um desconchavado arremedo de declarações conjuntas; pode
exigir um maior grau de comprometimento da extrema-esquerda, entrando no
governo ou colocando por escrito o seu compromisso no momento da votação dos
próximos Orçamentos, isto para já não falar de aceitarem por escrito que, pelo
menos durante a próxima legislatura, se comprometem a respeitar o Tratado
Orçamental. Na crise de 2013 Cavaco Silva disse a Passos Coelho que não daria
posse a um governo do PSD apoiado no parlamento pelo PP – a coligação tinha de
se traduzir não só na existência de ministros do PP, como na presença do seu
líder à mesa do Conselho de Ministros.
A questão, para o Presidente,
não é apenas seguir ou não seguir o Parlamento, como por aí se diz. A questão é
saber se consegue ou não uma solução com mais solidez, mesmo que à esquerda, do
que a actual pantomina. Isso atrasa o Orçamento de 2016? Por certo. Mas se
acreditasse em António Costa, o que está em causa, para ele, não é apenas esse
Orçamento, mas também os de 2017, 2018 e 2019.
Eu diria mesmo que o dever do
Presidente é obter garantias do PS e da extrema-esquerda que estas ainda não
deram, como se tornou pateticamente evidente no momento da tripla-assinatura às
escondidas. Podem o PS e a extrema-esquerda dá-las? É que se não tiverem é
absolutamente legítimo considerar que a única coisa que temos é a tal
“coligação negativa” cuja missão – derrubar o governo PSD/PP – até já foi
alcançada.
Ora só pode ser o facto de o
Presidente ter este poder – um poder que limita e equilibra o de Costa e o da
sua conglomeração de ódios e recalcamentos – que faz com que o líder do PS está
nervoso. Ele sabe que não tem um acordo sério com a extrema-esquerda, e também
sabe que nada mais arrancará do PCP. Tem por isso de tentar subverter a letra e
o espírito da Constituição, transferindo na prática da Presidência da República
para o Parlamento o poder efectivo de nomear o primeiro-ministro.
É também por isso que não
surpreende o ódio e o veneno que mesmo deputados socialistas com
responsabilidades já vertem para as redes sociais. O PS, que sempre se julgou
dono da Presidência da República (“a maioria do povo português é de esquerda”,
sempre garantiu Mário Soares), nunca suportou bem que Cavaco Silva aí tivesse
chegado por duas vezes. Agora que é aí que se encontra a derradeira barreira a
uma manobra que subverte todas as tradições do regime, já não conseguem
disfarçar não apenas a sua ansiedade, mas um discurso de um radicalismo que já
ultrapassou todos os limites.
Isto não é um Presidente, é um
gangster. pic.twitter.com/PBjpOvhhoH
—
TiagoBarbosaRibeiro (@tbribeiro) 17
novembro 2015
Os pais da nossa Constituição
não desenharam um regime puramente parlamentar porque não queriam repetir os
erros e a experiência da I República. Ao querer parlamentarizar ainda mais o
regime, rompendo um dos seus equilíbrios e um dos seus mecanismos de checks
and balances, o PS leva-nos de regresso à I República. Ao ressuscitar um
tipo de linguagem extremista, cheia de ódio e recriminações, tal como ao
adoptar uma política que começa por escolher os inimigos a abater, o PS o que
está a fazer é a levar-nos também de regresso ao ambiente político da I
República. Um dia ainda vamos confundir António Costa com Afonso Costa.
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