Rui Ramos
Na Holanda, a história do populismo é mais
complicada: o regime europeísta deixou a “extrema-direita” usurpar o papel de
defensora da tradição nacional de liberdade e de tolerância.
O líder anti-imigração e antieuropeísta
Geert Wilders perdeu as eleições na Holanda, mas, como tinha previsto, mesmo
perdendo, ganhou: o debate eleitoral andou à volta dele, e tem agora mais cinco
lugares no parlamento. Não se percebe a festa dos antipopulistas, sobretudo
quando notamos que, para se manter em primeiro lugar, o líder da direita
europeísta, Mark Rutte, teve de copiar Wilders, gritar aos imigrantes
“adaptem-se ou vão-se embora” e começar uma guerra de embaixadas com a Turquia.
E mesmo assim perdeu um quarto dos seus deputados.
Que se passou na Holanda?
A Holanda faz há muito tempo
figura de país mais tolerante do mundo. No século XVIII, era na Holanda que os
ateus e os republicanos da Europa publicavam os livros e panfletos com que
incomodavam as monarquias e as igrejas do continente. No século XX, foi na
Holanda que pela primeira vez se legalizaram comportamentos que noutros Estados
europeus davam direito a prisão. Porque é que toda esta tolerância votou agora
em Wilders e forçou Rutte a imitar Wilders?
Depois do Brexit e de Trump, a
imprensa habituou-se a despachar todos os incidentes eleitorais deste tipo com
digressões sobre xenofobia e globalização. Mas na Holanda, a história é mais
complicada: desde o fenómeno Pim Fortuyn, em 2002, que o regime europeísta
deixou a “extrema-direita” usurpar o papel de campeã da tradição nacional de
liberdade e de tolerância. Na Holanda, os “nacionalistas” defendem a igualdade
das mulheres e dos homossexuais, a liberdade de expressão e a democracia.
Wilders dirige uma espécie de revolta da tolerância. Porquê? Porque lhe é
possível pintar a Holanda iluminista e progressiva sob a ameaça de uma
imigração que rejeita a história e os valores holandeses.
É apenas “racismo”, como dizem
os seus inimigos para pôr fim à conversa? Quando se fala de imigrantes, fala-se
de pessoas, quando muito de famílias, e das suas dificuldades de “integração”.
Mas em grandes números, com os meios de comunicação de hoje, as migrações
formam comunidades que, muito humanamente, aspiram a manter as suas identidades
e políticas de origem. É o caso da diáspora muçulmana do Médio Oriente e do
Norte de África.
Por isso, os imigrantes
muçulmanos não estão a integrar-se na Europa, mas a integrar a Europa no mundo
de onde vieram, como a Holanda e a Alemanha perceberam quando, a semana
passada, se viram transformadas em terreno da campanha eleitoral do ditador turco
Erdogan. A maioria dos migrantes procura apenas uma vida melhor, incluindo os
muçulmanos. Merecem uma oportunidade. Mas no caso da diáspora do Médio Oriente
e do Norte de África, há muita gente, como os islamistas ou o novo sultão da
Turquia, determinada em usar as migrações para acelerar o que julgam ser a
crise de uma sociedade europeia em regressão populacional e confusão
ideológica. Erdogan mantém de reserva dois milhões de “refugiados”, que ameaça
largar sobre a Europa sempre que os europeus o incomodam. São as suas armas de
destruição demográfica. As migrações, deste ponto de vista, já não são uma
simples questão de arranjar empregos, escolas e apartamentos para quem chega.
São um problema político, e não basta falar de “islamofobia” para o resolver.
As elites instaladas da Europa
não o reconhecem porque, muito ingenuamente, ainda encaram a imigração com uma
velha arrogância colonial. Uns esperam que as comunidades muçulmanas na Europa
renunciem a identidades e projetos próprios, para se diluírem em novas pátrias
ou num multiculturalismo secularista. Outros, na esquerda radical, acreditam
que são a “classe operária” que lhes tem faltado para a “luta de classes”.
Porque é que as elites
instaladas não privam demagogos oportunistas como Wilders da vantagem de serem
aparentemente os únicos a reconhecer o problema? Porque para as elites
instaladas, tudo isto é um “jogo”. Em geral, o populismo serve-lhes para
assustar os eleitores (vem aí o fascismo!), embora nunca hesitem em pedir aos
populistas alguma retórica emprestada. Ganham, mas, como Mark Rutte, perdendo.
Ao contrário de Wilders.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
17-3-2017
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