Cesar Maia
1. “O Geert” é Geert Wilders [foto], líder do Partido da Liberdade (sigla
em holandês: PVV), atualmente o terceiro maior no país. A tempestade política
anunciada por Wilders domina o debate político e a campanha para as
legislativas. Anti-Islã, anti-Europa, pró-valores nacionais, anti-refugiados e
pró-referendo: Wilders é um populista de direita. E, embora ele se tenha
distanciado da etiqueta de “extrema-direita” e a comunicação social holandesa
prefira o termo “populista”, a verdade é que Wilders colabora diretamente com
Marine Le Pen, líder da Frente Nacional francesa, Frauke Petry, da Alternativa
para a Alemanha, e Matteo Salvini, da Liga Norte italiana. Juntos querem uma
“primavera patriótica” na Europa, na esteira do ‘Brexit’ e da eleição de Donald
Trump nos Estados Unidos.
2. Com eleições este ano na Holanda, França e Alemanha, o resultado
do próximo dia 15 é visto como previsão das chances de Le Pen e Petry. Numa
sondagem recente da empresa Prendid, o PVV vai tornar-se o maior partido no
Parlamento, com 31 dos 150 lugares. Outros estudos de opinião colocam Wilders
em segundo lugar, depois do VVD, o partido liberal-conservador do
primeiro-ministro, Mark Rutte.
3. De qualquer das maneiras, o sentimento anti-Islã e anti-Europa é
forte na Holanda, país de 17 milhões de habitantes e cerca de um milhão de
muçulmanos, sobretudo nas grandes cidades. Embora o país tenha saído da crise
econômica de há quatro anos, sobretudo devido à indústria criativa, digital e
financeira, há um grupo cada vez maior de pessoas que se sentem excluídas dos
benefícios da globalização. É esse grupo que se sente atraído pela política do
“retorno aos valores nacionais” e que olha com desconfiança para os partidos
tradicionais. Wilders tem sabido, como nenhum outro, canalizar este descontentamento.
4. Quem é o “Mozart de Venlo”, como é apelidado carinhosamente, por
causa dos cabelos aloirados? Nascido no Sul do país, em Venlo, na província de
Limburgo — baluarte do catolicismo, do Carnaval e da boa comida —, Wilders
entrou para a política em 1990, como assessor do VVD. Em 1998 foi eleito
deputado pelo mesmo partido, hoje seu rival. Foram os anos das chamadas
“coligações roxas”, isto é, que aliavam o vermelho do trabalhista PvdA ao azul
do VVD (e, por vezes, o verde-escuro democrata-cristão e o verde-claro dos
liberais). Esses governos introduziram legislação progressista, entre outros no
campo da eutanásia e do casamento homossexual.
5. Foram também, todavia, os anos do descontentamento crescente de
grandes camadas da população holandesa, que se sentem marginalizadas pelas
elites políticas tradicionais. Depois dos atentados cometidos pela Al-Qaeda a
11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, o sentimento anti-islâmico começou
a ganhar terreno no país. “O Islã é uma cultura retrógrada.” Foi com este
slogan que o sociólogo Pim Fortuyn, em muitos sentidos precursor de Wilders,
conseguiu uma ascensão meteórica na vida política holandesa, poucos meses
depois da queda das Torres Gémeas em Nova Iorque. Além de crítico do Islã,
Fortuyn não poupava as elites políticas do país, que teriam perdido o contato
com a sociedade e o homem comum.
6. Pouco habituados ao fenômeno do populismo, os líderes de
partidos como o PvdA, o VVD e o D66 (liberais progressistas) não hesitaram em
estabelecer paralelos entre o fascismo e o movimento político de Fortuyn. Nunca
o debate político e a campanha eleitoral tinham assumido um tom tão duro e
radical como na primavera de 2002. A 14 de março, durante o lançamento em Haia
do seu último livro, Fortuyn levou uma bola na cara. A 6 de maio, durante a
campanha eleitoral, foi alvejado com cinco balas e morreu, vítima de um
atentado cometido por um ecologista radical. Postumamente, conseguiu 26 dos 150
lugares no Parlamento, nas eleições de 15 de maio de 2002.
7. Desde o atentado terrorista no Museu Judaico de Bruxelas, em
2014, em que um islamita radical matou quatro pessoas, vários locais judaicos
na cidade têm proteção especial, nos dias da semana pela polícia, no sabat por
militares. A vigilância constante também
é uma realidade para Wilders: desde o assassínio do cineasta Theo van Gogh por
um terrorista islamista, em 2004, o líder do PVV está na lista negra de
organizações ligadas à Al-Qaeda e tem proteção pessoal permanente. Em casa, o telejornal não dá a tempestade
como notícia de abertura. Outra notícia, a de uma fuga na organização
responsável pela segurança pessoal de Wilders, é mais importante. Um dos
polícias da equipe que investigava a segurança dos lugares visitados por
Wilders falou em privado com amigos sobre lugares onde Wilders estava.
8. O policial era de origem marroquina. Uma situação inaceitável
para o líder do PVV, que cancelou todos os encontros públicos até haver mais
certeza sobre a sua segurança pessoal. Como também limitou o número de debates
pela televisão a um mínimo — fará apenas dois debates até às eleições —, a
campanha de Wilders será, por força, uma campanha de Twitter. É uma coisa que
tem em comum com o recém-eleito Presidente dos Estados Unidos: Wilders é um
viciado das mensagens de 140 caracteres. No início de 2004, Wilders ainda
representava o partido liberal-conservador VVD no Parlamento; no fim desse ano,
já saíra para lançar um movimento político independente. Hoje, diz que o VVD é
“um partido mafioso que engana e intimida as pessoas”. O que aconteceu para
causar tão grande reviravolta?
9. A ruptura com o VVD aconteceu quando Wilders começou a opor-se à
tolerância religiosa do partido e, sobretudo, por causa de uma diferença de
opinião sobre a eventual integração da Turquia na União Europeia. Wilders saiu
do VVD, mas não abandonou o seu lugar de deputado. Passou a independente e,
desde 2006, tornou-se líder do PVV. Para evitar a má experiência do movimento
político de Pim Fortuyn, que se desfez depois da morte do seu líder, o PVV é
uma associação com um único membro relevante: Geert Wilders. Tentativas de
“democratizar” o partido por dentro, feitas algumas vezes por deputados do PVV,
resultaram sempre na respectiva expulsão do grupo parlamentar.
10. A hora mais feliz da carreira política de Wilders foi a vitória
nas eleições parlamentares de maio de 2010. O PVV subiu de 9 para 24 lugares,
num hemiciclo de 150. Wilders apoiou um governo minoritário de coligação entre
o VVD e o democrata-cristão CDA, sem fazer parte desse Executivo. Foi então que
Rutte sucedeu a Jan Peter Balkenende, do CDA, como primeiro-ministro. Na
altura, a colaboração gerou grande controvérsia, sobretudo nas fileiras do CDA.
Só após um congresso partidário com debates emotivos, de intensidade pouco
comum na Holanda, os democratas-cristãos deram aval a um governo apoiado pelos
populistas de Wilders. Foi, contudo, sol de pouca dura. No que tocava ao apoio
ao projeto europeu, o PVV não apoiou o Executivo (por exemplo, na votação do alargamento
do Fundo Europeu de Estabilização Europeia para possibilitar ajuda financeira à
Grécia).
11. Dois anos depois de assinar o acordo com o VVD e o CDA, o PVV
retirou o seu apoio, por não concordar com medidas de austeridade propostas
pelo Governo. Para o PVV, as medidas eram opostas à agenda econômico-social de
Wilders, de cariz socialdemocrata. Para os partidos governantes, a “traição” de
Wilders é razão para excluir qualquer futura colaboração com o partido
populista. O isolamento político, contudo, não o enfraqueceu: nas eleições
legislativas de 2013, o PVV ficou com número igual de deputados. Amsterdam
Ocidental é a zona onde vive a maioria da população de origem marroquina e
turca. É aqui que a primeira geração de imigrantes — muitos já na idade da
aposentadoria, outros no desemprego — passa os dias nas casas de chá. A
Westermoskee, uma mesquita nova e orgulho da comunidade turca, brilha em todo
seu esplendor. Não muito longe, outra mesquita, marroquina e mais modesta, está
instalada numa antiga igreja. Na rua, encontramos o jovem estudante Hasan,
cujos pais vieram de Marrocos no século passado. “Sinto-me cada vez menos
bem-vindo na Holanda”, diz. “Sobretudo depois de Wilders dizer que quer menos
marroquinos no país.”
12. Hasan refere-se a um incidente que levou o líder do PVV a
tribunal, sob acusação de insulto coletivo, discurso de ódio e discriminação.
Em março de 2014, durante um encontro político num café em Haia, para celebrar
uma vitória eleitoral local, Wilders perguntou ao público presente: “Querem
mais ou querem menos marroquinos?” O público respondeu, com entusiasmo: “Menos,
menos!”. Ao que Wilders reagiu: “Então vamos tratar disso”. O incidente foi
notícia de primeira página em vários jornais europeus. Choveram denúncias de
discriminação e, em dezembro do ano passado, o tribunal considerou Wilders
culpado de insulto coletivo e discriminação, sem aplicar uma pena. Wilders
comentou no Twitter que o tribunal era “uma farsa”.
13. O programa político de Wilders não cabe num tweet, mas pouco
falta. Uma folha A4 foi suficiente para apresentar os pontos principais, sob o
mote “A Holanda de novo nossa”. As promessas mais importantes: “Desislamização
da Holanda, fechar as fronteiras a refugiados e imigrantes provenientes de
países muçulmanos, proibir o véu islâmico em funções públicas, proibir o
Corão”. Quanto à Europa, não deixa dúvidas: “Uma Holanda independente, isto é,
sair da UE”. Wilders promete “uma democracia direta, com introdução do
referendo vinculativo”. Outros pontos são “seguros de saúde menos caros, rendas
mais baixas e menos IRS”. Incluída no
programa está uma estimativa dos custos e rendimentos de cada um dos pontos. As
medidas anti-islâmicas, por exemplo, devem render 7200 milhões de euros. A
credibilidade destes números é duvidosa, porque o PVV, ao contrário de outros
partidos políticos, recusou o habitual cálculo de viabilidade económica do seu
programa, executado sempre por uma agência do Ministério da Economia antes da
campanha eleitoral. O programa não indica os efeitos económicos ou financeiros
de uma eventual saída da UE.
14. Segundo um estudo encomendado pelo PVV em 2014 à agência
britânica Capital Economics, a economia holandesa “cresceria substancialmente”
em caso de ‘Nexit’ [do nome do país na língua local, “Nederland”], com um
rendimento positivo de “quase 10 mil euros” em 20 anos para cada cidadão
holandês. Um estudo recente do banco holandês Rabobank chega a uma conclusão
radicalmente oposta. A desintegração da UE, ou a saída da Holanda, resultaria
numa descida de 10 a 15% do PIB e a uma duplicação da taxa de desemprego. O
cenário de um ‘Nexit’ é realista? Se fosse Wilders a decidir, não haveria
dúvida: a ruptura com a “Bruxelas totalitária” está na agenda do PVV há muitos
anos. Os outros grandes partidos, contudo, são contrários à saída e defendem,
no máximo, uma redução dos poderes da UE.
15. A Holanda é um dos países fundadores da Comunidade Económica
Europeia e a sua dependência económica da Europa é grande, sobretudo a nível da
exportação para a Alemanha. Realidade económica à parte, não seria a primeira
vez que o nível de euroceticismo na Holanda surpreende os políticos. Em junho
de 2005, o projeto de Constituição Europeia foi rejeitado por 61,5% dos
participantes, naquele que foi o primeiro referendo nacional na história do
país. A vitória do “não”, com uma margem maior do que a da consulta popular
realizada três dias antes em França (onde 54,9% rejeitaram a Constituição
europeia), deveu-se em parte à falta de uma campanha pelo “sim”. Os europeístas
davam a vitória por certa.
16. Os referendos, na Holanda, são apenas consultivos e não
vinculativos. Além disso, só é possível organizar um referendo sobre leis
aprovadas recentemente, de maneira que um referendo sobre a saída da UE não é
hoje possível. A consulta holandesa sobre o tratado de associação da Ucrânia
com a UE, celebrada em abril do ano passado, pode ser vista, à falta de um
referendo sobre o ‘Nexit’, como um bom barômetro da popularidade da UE no país.
Uma maioria de 61% votou contra (com uma participação de 32%). Pouco antes
desse referendo, Nigel Farage, então líder do britânico UKIP (Partido pela
Independência do Reino Unido) e principal adepto do ‘Brexit’, visitou a Holanda
para participar na campanha do “não”.
17. Segundo Farage, o triunfo do “não” na Holanda seria um “grande
apoio” para a campanha do ‘Brexit’. Dois meses depois, as palavras de Farage
soaram quase como uma premonição. A
maior surpresa de 2016 para os partidos políticos tradicionais holandeses foi a
vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Wilders
reagiu eufórico: “Esta vitória é uma revolução […] O que é possível nos Estados
Unidos também poderá acontecer na Holanda”. Por outro lado, há partidos
tradicionais que acham que o efeito poderá ser completamente oposto. “Talvez
isto sirva para despertar as pessoas”, disse o líder neoliberal, Alexander
Pechtold (D66).
18. É provável que as caóticas primeiras semanas do mandato de
Trump não tenham ajudado a manter uma boa imagem da revolta populista: foi
exatamente durante estas semanas que o partido de Wilders desceu ligeiramente
nas sondagens. E há outros “efeitos Trump”: uma desconfiança em relação às
sondagens, que falharam no caso americano, e alguma apreensão face à
possibilidade de a Rússia ter interesse em manipular as eleições holandesas. Há
quem afirme que isso já sucedeu no referendo sobre a Ucrânia.
Governo Wilders?
19. Se o PVV ganhar as eleições, haverá um governo Wilders? É pouco
provável. A Holanda, onde a tradição do consenso político é muito forte, tem
normalmente governos de coligação, com a participação de dois, três ou até
quatro forças políticas. Até agora, todos os grandes partidos tradicionais
excluem uma colaboração direta com Wilders. Mas, com quase 30 partidos a
participar nas legislativas, existe o perigo de fragmentação do Parlamento.
Tanto a esquerda como a direita estão muito divididas, havendo formações
temáticas como o Partido dos Animais e o Partido 50+ (em defesa das pensões)
que conseguem sempre lugares no Parlamento. Por isso, se bem que pareça
irrealista um primeiro-ministro Wilders, um Governo sem o seu apoio também pode
revelar-se inviável. Até 15 de março e calma antes da tempestade.
Título e Texto: Cesar Maia, 14-3-2017
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