Aparecido Raimundo de Souza
1
O OVO NÃO QUERIA mais saber de ficar preso dentro do invólucro exterior
que o impedia de ver a vida de forma plena. Furioso, arranjou um jeito de se
livrar daquela prisão que o oprimia e fazia dele um encarcerado recluso.
2
Na verdade, precisava se sentir leve e solto, desembaraçado e sem
amarras, experimentando o frescor do vento e o calor aconchegante do sol
radiante que brilhava além daquelas janelas que se abriam para o infinito azul,
alguns metros da sua imensurável e gélida insatisfação.
3
Clara, sua querida e apaixonada namorada, sabedora dessa vontade quase
doentia do velho zigoto, estava disposta a tolher os seus anseios e a jogar por
terra a sua pretensão. Aspiração, que, aliás, nem chegou a ser colocada em
prática. Contudo, precisava tentar. Desistir, jamais. Necessitava mudar a
cabeça daquele bobalhão que se julgava o tal e dono do mundo. Assim pensando,
tratou de ir ter uma conversa de pé de ouvido com a irmã Gema.
- Sabia que o Ovo fugiu da casca outra vez?
- Sim. Se não me engano, a décima segunda. Ovo não toma jeito. Vai acabar
se fo... se estrepando. Eu o vi ainda há pouco, se esgueirando aí pelos cantos.
Gritei feito uma louca para que voltasse, mas qual o quê! Você conhece o Ovo
melhor que eu...
- E onde essa criatura estará metida agora?
- Você nem ima-Gina, mana! Meu Deus!... só de pensar...
- Fala diulma vez.
- Na cozinha. Todo rebentado numa frigideira em cima do fogão.
4
- Jesus, Maria, José. Precisamos fazer algo. E urgente, ou o meu
queridinho virará uma bela fritada, sem contar que irá parar na barriga de
alguém.
- Que horror!
- Bota horror nisso. Bota horror nisso.
- Me conta como tudo aconteceu?
- Até onde me foi possível presenciar, o barato rolou assim. Ovo
conseguiu chegar até a porta da cozinha. A empregada veio da área de serviço e
estranhou ver Ovo ali, num canto, inteiro. Pensou que tivesse sido as crianças
dos patrões. Bem, a espertinha não perdeu tempo. Passou a mão no sujeitinho,
bateu nele várias vezes com uma colher de pau e o jogou para dentro da panela.
- Panela ou frigideira?
5
- Nessa altura, tanto faz.
- Que azar, mana!
- Só não virou comida, a essa altura, porque milagrosamente faltou óleo e
a empregada correu até o supermercado aí da pracinha a mando da patroa comprar
outra lata.
- Então vamos agir?
6
- Imediatamente. Espero que ainda tenhamos tempo. Tem uns dez minutos que
ela saiu...
- OK. Por onde começamos?
- Tipo assim. Você vigia a porcaria da empregada. Ela logo deve estar de
volta. Como lhe falei, faz tempo que saiu. Enquanto isso, eu passo a mão em
nosso pobre e querido Ovo e o tiro das garras da morte. Espero, mana querida,
ainda chegar a tempo...
- Então deixa de falar. Vamos nessa. O tempo urge!
7
Numa corrida louca contra o tempo, entre o cômodo onde ficava a geladeira
até à cozinha, para uma simples clara e uma humilde Gema, cada centímetro, uma
eternidade. Sabendo disso, Clara correu para onde o Ovo se achava estirado na
frigideira, alguns centímetros apenas do bico do fogo que o cozinharia vivo.
Visto assim grosso modo, uma situação arriscada, mas ela precisava tentar. Ou
salvava seu futuro cunhado ou...
8
Nesse interregno, a irmã Gema voou para a porta à espreita da empregada.
O azar, contudo, se faz presente e a pegou de surpresa. Astolfo, um dos filhos
da patroa entrou na cozinha estabanadamente. No que entrou, pisou, sem querer,
sem ver, em Gema, esmagando-a contra o insólito chão de ladrilhos.
9
Praticamente nos calcanhares de Astolfo, veio, no vácuo dele, Astuldo, o
irmão. Vendo a Clara sobre a pia, e o Ovo dentro da frigideira, temendo, ambos,
levarem uma bronca da mãe, por terem deixado as coisas fora de lugar (e um
detalhe interessante, entretanto de vital importância, nem foram eles que
deixaram as coisas fora de ordem), enquanto um abria a torneira para lavar a
frigideira e jogar, via ralo da pia, o pobre ovo e a clara, o outro
consanguíneo limpou a bancada onde a empregada deixava os apetrechos para o
preparo das refeições diárias.
10
Com esses gestos efetivamente inocentes, Astolfo mandou para o espaço o
pobre e infeliz do Ovo e sua linda e esfuziante namorada Clara, enquanto o
irmão Astuldo, ao cuidar da bancada, atirou, na cesta de lixo, as roupas, ou
melhor, as cascas do Ovo, que mal teve tempo de gritar por socorro. Coitada da
Clara. Pelo menos morreu feliz, abraçada a seu Ovo amado. Não conseguiu salvá-lo da morte, porém,
partiu dessa para outra vida abraçada a ele.
11
Gema, a irmã, igualmente não teve escapatória. Sua sorte bateu no brejo.
Acabou sua sina no caminhão de entulhos e estercos, sozinha, junto com outros
tantos detritos vindos de outras residências.
12
Alguém, é bom que se diga, se deu bem nessa historinha aparentemente
triste e melancólica. Livre de ter se transformado numa saborosa omelete, cheia
de cebolinhas picadas, cheiro verde a gosto, alho e pedaços de tomates e queijo
ralado, Ovo se salvou junto com a sua esfuziante amada Clara e ambos, até onde
se sabe, foram felizes para sempre.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista, de Carapicuíba Interior de São Paulo.
8-4-2017
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MALDITAS” VOLUME 3.
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