Aparecido Raimundo de Souza
1
UM CÉU NEGRO, horrendo e recalcado, pairava indócil e labrusco, sobre a
cabeça da infeliz criatura com presságios aterradores. Abestado, preso ao chão, e pior, acorrentado
ao impreciso do acervo de mínimas coisas não realizadas, de sonhos não
concluídos, de caminhos não percorridos, o boçal não conseguia distinguir o
certo do errado, o errado do verdadeiro, e o mal do não pernicioso. Tampouco
vislumbrar tempo bom à frente dos seus tristes olhos.
2
Sofrimentos expiatórios o embaraçavam. Em resumo, sabia, de antemão que
seu exílio penoso, sua vida cotidiana e pacata, se consubstanciava,
exclusivamente, num curto esforço para morrer com dignidade. Nada mais que
isso. Partir desta para melhor, sem pecados, alma pura, quando a hora
derradeira se abeirasse ao seu derredor.
3
Abaixo da abóbada amulatada e sombria, uma nuvem carregada de escuridão
compactada, não treguava. Não dava um tempo, por menor que fosse. Do mesmo
modo, não permitia que a imensidão, em todo seu esplendor, se expandisse e se
mensurasse diante da sua mudez esquelética.
4
Para aumentar o medonho da sorte ingrata, triplicando o contato maléfico
com seu corpo em frangalhos, ventos contrários sopravam impiedosos. Uivavam com
fúria descomedida. Davam a impressão de, a qualquer momento, derrubarem tudo
por terra, inclusive os acalantos mais tenros que carregava carinhosamente num
cantinho oculto do peito.
5
O dia turbado e embaciado pela obumbração de enorme vulto melancólico, se
prolongava em horas tristes. Os minutos se arrastavam indefinidamente. Tudo se
tornara uma solidão só agredindo a alma, espancando a tênue esperança que, por
algum motivo inexplicável, insistia em permanecer e não só permanecer, mas
resistir às intempéries daquele quadro lúgubre e desolador.
6
E ele, idiota e infeliz, na sua imbecilidez, atribulado no seu desterro,
o receio temoroso estampado nas feições esfingéticas, na convizinhança com
outros sobressaltos, os músculos tesos e atados, a cabeça em farrapos, o
coração forrobodeando com batidas irregulares, andava pra lá de desorientado,
sem saída, à mercê do acaso, algemado, manietado, encadeado nos próprios
pensamentos. Em verdade, se sentia o Zé Coitado, numa espécie de constrangência
ímpar, sem simetria, como um ninguém, um mísero desafortunado diante da
tiranização estrólica que o seu agora lhe oferecia.
7
O firmamento taciturno, pretumado continuava inteiro na sua entediosa
escuridade. Insistia em não dar brecha. De fato, não dava. A nuvem incômoda,
por seu turno, se duplicava. Não oportunava lequear uma fenda, uma porta de
escape, que delimitasse, sequer, as pretensões de melhorar aquele velório de
experiências austeras e inexoráveis. Os ventos, como de comum acordo,
vociferavam numa demonstração de imparcialidade.
8
Por derradeiro, o dia... o dia se subjugava, se confrangia, se chumbava
em grilhões de previsões e pressentimentos de vindouros empedernidos,
perversos, ressentidos talvez, de perspectivas mensuradas com infinitos poderes
de destruição.
9
E o Mané, sem saída, esperava, esperava... talvez - pensasse com seus
botões -, “quem sabe o sol dissipasse a nuvem, acalmasse os ventos... talvez o astro rei, com a sua magnanidade, se
assoberbasse e levasse para longe aqueles taciturnos e desolados momentos de
brusca invernia e dorida agoniação”.
10
Quem sabe, no seu lugar recolocasse a paz, não só ela, de roldão, a
alegria em sua melhor forma de expressão. Zé Sofrido queria, sobretudo, seu
chão de volta, seu espaço sereno, inteiro, fascinante, versátil. Objetivava
enxergar além do verdugo inoportuno, detalhar uma moldura que ornasse o painel
da sua existência medíocre, em mutualidade com a fotografia mágica, uma
fotografia (não importava se colorida ou em branco e preto), um arquétipo que
não esbugalhasse seus recatos de menino desesperado, sem mãe, sem casa, sem
Deus. Quem sabe, algo de agradável acontecesse e o destino deixasse de destruir
seus esforços benfazejos.
11
De repente, diante da sua perplexidade natural, amolecendo as fibras
emotivas, eis que o milagre encantadoramente aportou. Uma elucubração sábia se
ancorou se fundeou, se fez manifesta. Assomou assim do nada, vasto e colossal,
o imensurável. Com a chegada dele, tudo se transformou. O ilimitado deixou de
ser lôbrego, disforme, para se revestir (como num acender de uma lâmpada), num
azul bucolicamente inexplicável.
12
A atmosfera carregada, alimentada por invencível força motriz, se viu
devorada pela varinha de uma fada encantada. Sua escuridão se rompeu, se
arrebentou se esfacelou, culminando, filtrada, numa energia abissal, como se milhões
de pequenas ondas eletromagnéticas se propagassem como fótons pelo espaço e se
acendessem a um só tempo.
13
Aos ventos agressivos, medida idêntica também restou imposta. Uma
disciplina de resignação e humildade se fez reinante. Por assim, os ares
revoltos se acomodaram, se arrumaram, se apaziguaram. Tomaram formas de brisas
soprando amenidades. O dia... bem o dia se radiantou, formoso, glorioso,
pungente, sem manchas, sem nódoas.
14
Delongou ainda, porém, agora, dando a perceber, que o relógio do tempo
mudara as horas, reformulara os minutos, estabelecera os segundos, engatado,
sofreado a um poder superior e inimitável.
15
O sobrenatural invisível de um porvir cheio de glórias e alegrias surgiu
magnífico, intocável, belo, agigantado, envolvido num halo bendito... quem
sabe, talvez, travessuras do Sublime Emissário e Senhor de todas as coisas.
16
Zé Ninguém (coitado do infeliz!) se exortou dessas mazelas, se
descabelou, se inflamou. Ainda sem entender o que ocorria a sua volta, o
Abobalhado sorriu destrambelhado, se alegrou, se formoseou, se sublevou se
atiçou, se coloriu. Não contente Zé Bosta chorou de emoção, se avivou, se
adornou, se afobou. Nessa letargia gritou, esperneou, reagiu.
17
Tinha consciência, que a partir daquele momento poderia viver livre e
pundonorosamente como senhor de si e de seu destino. Entrementes, quando
pensava em se ajoelhar e agradecer, levado pela excitação do copo muito tempo
vazio, enchido, agora, pelo líquido generoso do vinho da Esperança, o
desgraçado, num irrefletido de otimizada euforia... soltou um peido enorme...
depois outro, e mais outro...
18
A fedentina desses traques (se acomodando pelos cantos do quarto), logo
se espalharia vertiginoso, forte e pesado. Temendo peidar pela quarta vez, pior
que isso, cagar na cama, sujar o lençol, e, de contrapeso, fazer feio à
namorada que dormia pelada e de conchinha, o corpo esguio, em cuja pele rosa se
abrindo em flor escoava, de leve, a luz de uma manhã radiante, que entrava
pelas frestas da janela lhe dava ares salpicados de uma princesa banhada em
ouro.
19
Sem falar nos cabelos compridos que se desmanchavam, alvoroçados, pelos
travesseiros, deixando à mostra um rosto bonito, colado ao seu, os olhos tênues
palpebrados numa sintonia meridiana de etéreo prazer.
20
De repente o infausto, desastrado, apavoradíssimo... na ânsia de peidar
(e se não fosse só mais um peido?!) trêmulo, perplexo, titubeante, droga, se
cagasse, de verdade, o que fazer? Não, não, não, cagar não!... a vontade de
peidar cada vez mais forte, a moça enleada a ele, que situação, o que dizer?! O
que fazer?! Imagine, que vexame, a bela toda esborrada de merda! Não, não,
Nãoooooo! Cagar, agora... entrementes, trêmulo, amedrontado, abalado,
depauperado, fora de si, suando em bicas…
A C O R D O U…
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De
São Paulo Capital. 7-4-2017
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3.
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