Aparecido Raimundo de Souza
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Fazia exatamente três meses que Fernandinho Saraiva tinha perdido o
emprego na fábrica de tecidos Santa Efigênia, a única indústria que arrebanhava
quase toda a população daquele lugarejo esquecido bem lá no fim do mundo. Por
causa desse infortúnio inesperado, continuava desempregado, largado ao
deus-dará, rolando pela pacata São Pedro da Cachoeira, sem um centavo nos
bolsos para um pão com manteiga e uma xícara de café. Sem ter o que fazer, não
via como arranjar dinheiro rápido para pagar o aluguel da pensão onde morava, a
conta da quitanda do Sinval, a do armazém do Marcão e até a da farmácia do
velho Diclofenaco.
2
Quase a arrancar os poucos cabelos que lhe restavam, parou um instante,
na praça da matriz, e se acomodou num banco diante do chafariz. Na verdade, o
chafariz, não passava de um moleque de cimento armado, completamente nu,
fazendo xixi numa espécie de tanque em formato de penico.
— Meu Deus! — cogitou com seus botões, enquanto espiava em derredor. — O
que faço para sair dessa maldita pindaíba?
Pelo relógio da igreja, vinte e uma horas e trinta e cinco minutos da
noite. Como chegar em casa com dona Angelina tirando plantão vinte e quatro
horas? Pior é que a janela da peste da mulher divisava com a via de acesso ao
seu quarto, se é que se poderia chamar aquilo de quarto. Se conseguisse entrar
sem ser reparado, com certeza, tomaria um bom banho quente, relaxaria debaixo
do chuveiro uns quarenta minutos e depois, então, espicharia o cansaço doído do
corpo rebentado na cama barulhenta.
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Todavia, isso era praticamente impossível. A proprietária não baixava a
guarda. Semelhava parentesco com o diabo. Nunca abandonava a vigília, nem para
usar a latrina que exalava para os cômodos fronteiriços um cheiro repugnante de
torcer até nariz de defunto podre. Sempre atenta, a megera não pregava olhos,
varava a madrugada inteira fumando cigarro após cigarro, o que provocava em sua
garganta uma tosse repugnante e interminável. Raios! Tinha que haver uma saída,
uma solução que pusesse fim à sua desdita. Mas qual?! De onde viria a tábua
salvadora que o livraria do mar revolto?
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Pensara em vender churrasquinho e pipocas na porta do clube, mas o clube
(aliás, o único) só funcionava nos finais de semana e feriados. De segunda a
sexta-feira, as ruas da pequena cidade ficavam às moscas, completamente
despovoadas, tanto de forasteiros que cruzavam indo ou voltando para a capital,
como, igualmente, de casais de namorados que afluíam de outras localidades
próximas e se ajuntavam nos barzinhos e danceterias existentes.
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Em lugarejos do interior, a turma se recolhe bem mais cedo que o pessoal
dos grandes centros. Logo depois da novela das oito, e, no domingo, ao terminar
o programa “Fantástico”. Prática antiga, até porque, dia seguinte, o peso da
segunda chegava arrebentando e sem dar tréguas. A labuta a enfrentar nos
maquinários da fábrica de tecidos se fazia tão certa e temente quanto a
presença fria da morte.
6
Desesperado, sozinho, com fome, sem nada na carteira para convencer um
cego a cantar, Fernandinho Saraiva continuava no banco. Danou a roer as unhas
num gesto de descontrole emocional. Às vezes, metia o dedo no nariz e retirava
de lá do fundo uma meleca gosmenta. Em seguida, limpava na manga da camisa.
Olhava para um lado, depois para o outro. Transeuntes cruzavam com ele.
Crianças choravam ao longe. Cachorros latiam. Um casalzinho de adolescentes
permutava carícias, encostado na parede do coreto. Um mendigo, de rosto agitado,
procurava, no chão, algo para forrar a barriga. Enquanto isso, Fernandinho
queria trocar as roupas, pegar uma ducha quente, descansar a carcaça, comer,
beber...
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Furioso, voltava às unhas e às sujeiras do nariz. Fazia aquilo
maquinalmente, sem perceber. Inquieto, nervoso, deslizou a atenção dos olhos
para o moleque do chafariz. Sentiu, de repente, que carecia urgentemente de um
canto ermo onde pudesse aliviar a bexiga comprimida. A coisa, por dentro,
andava prestes a estourar. Mijar, mijar, mijar.
8
Precisava tirar a
“água do joelho”. Mas tirar
como? No meio da praça? Na grama do jardim? Saltou do banco, apressado,
esbaforido. Lembrou de um espaço que seria ideal. O corredorzinho escuro e sem
saída atrás da igreja, entre o santuário e os aposentos paroquianos do Padre
Bartolomeu. Correu para lá. Realmente, uma ruela escura o aguardava. Mal
chegou, abriu o zíper e colocou o troço para fora.
9
Foi aí que uma moça pulou diante dele, sozinha. Sozinha uma figa! A
sem-vergonha saiu muito braba, levantando a calcinha e ajeitando apressadamente
a blusa e a minissaia. Fernandinho se assustou com ela. Tanto que não viu quem
a acompanhava: um puta de um armário embutido de quase dois metros de altura.
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O parrudo, sem perda de tempo bateu em retirada correndo e encobrindo o
rosto, ao tempo que vestia, como um foguete, a camisa e abotoava o jeans.
Naturalmente, os pombinhos, aproveitando o escurinho do gueto, transavam às
escondidas. O problema é que a jovem, menina de família, para não ficar
difamada e cair no escárnio popular, desandou a gritar como uma possessa:
— Tarado! Tarado!... tem um maluco aqui mostrando o pênis. Socorro!...
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Foi o que bastou para juntar uma pá de gente. Figuras de todos os cantos
se acotovelaram nas janelas das casas, nas varandas, nos muros, nas portas das
vendinhas. Encostou uma D20 com meia dúzia de soldados, a sirene ligada, faróis
acesos. O barulho ensurdecedor quebrou o marasmo dos cidadãos mais pacatos.
Dois grandalhões partiram à cata do infeliz, revólveres e cassetetes em punho.
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A santinha do pau oco, embora tivesse escapado de ser pega com a boca na
botija, não se fez de rogada. Continuou levando adiante a falsa história que
inventara. Afinal de contas, precisava manter em segredo seus encontros
furtivos. Em contrapartida, resguardar a identidade de seu doce amado. Para
tornar mais real seu propósito imundo, não se contentou só em apontar, mas
também em reconhecer, sem dó nem piedade, o pobre desgraçado:
— É esse aí mesmo, sargento. Estava com... meu Deus, Credo em Cruz, ainda está com isso aí à mostra. Veio para cima de mim,
querendo me agarrar, justo no beco do santo vigário.
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Fernandinho, descoberto e... “reconhecido”, levou umas bolachas pelo meio
das ventas, safanões e sopapos no pé do ouvido. Viu estrelas. Passarinhos
cantando, violinos em concerto tocando a Florentina, do Tiririca.
— Vamos ter uma conversinha com o delegado, seu maníaco de merda.
O desafortunado saiu puxado, arrastado pela camisa, como um marginal
perigosíssimo. E a rapariga, protegida do escândalo a gritar, eufórica:
— Corta esse malandro na porrada.
14
Sem entender nadinha de nada, Fernandinho não teve chance de esconder a
arma de artilharia, o flagrante delito que causou toda a confusão. Lá foi ele
para o xilindró. No meio das pernas, com
a cabeça de fora, uma pica roliça e magra, um cacete franzino, murcho, todo
molhado, que mal e porcamente conseguia segurar entre os dedos por causa da
algema apertada.
15
Em volta, a galera querendo linchar. Assistindo ao espetáculo, o menino
do chafariz continuou como estava: parado, quieto, mudo, frio, indiferente,
fazendo tranquilamente seu xixi interminável, a bengala dura entre as mãozinhas
pequenas, sem que ninguém lhe dirigisse um olhar de indignação ou de
desaprovação.
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(COMO OS DEMAIS QUE FOREM PRODUZIDOS), SERÁ PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS
SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM NOSSO PRÓXIMO LIVRO “LINHAS MALDITAS” VOLUME
3.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Da
Arena Condá, Chapecó, Santa Catarina. 5-4-2017
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