Aparecido Raimundo de Souza
“O mal do século está dentro de nós, vivo e pulsante, como um
segundo coração. Todavia, somos tapados, ou melhor, hipócritas e imbecis, a
ponto de não aceitarmos e, pior, desconhecermos completamente a sua presença
mortal.”
Dráuzio
Varella, médico e escritor.
ERA UMA VEZ UM CARINHA bonito,
de olhos verdes, o físico perfeito, atlético, que andava por aí pela cidade
numa BMW vermelha e se chamava Marcelo. Marcelo Aguiar. Um dia ele cismou e
transou com a Soraia, colega de academia que, antes dele, havia transado com o
Cauê, que dormira com a Regina, que transou com o Fernando, da farmácia, que
transou com a Patrícia, que transou com o Rodrigo, que transou com a Valdinéia,
que transou com o Alcebíades, que transou com a Vilma, que transou com o Paulo
Ricardo, que transou com a Juliana, que transou com o Neimar.
Neimar que saiu com a Beatriz,
que transou com o Flávio, que transou com a Gisele, que transou com o Ênio,
dono da padaria, que transou com a Carla, da lojinha de conveniências do posto
onde abastecia a sua motinha, que transou com o Ademar, frentista, do posto
concorrente, que transou com a Gabriela, que transou com Jorge, que transou com
a Bianca, que transou com Jonas, que transou com Domitila, que transou com
Romão, que transou com a Fábia, professora e advogada num processo em que ela o
defendia por pensão de alimentos.
Fábia, por sua vez, horas
antes do almoço, transou com o Marco Aurélio e com o Gabriel, dois alunos seus,
da faculdade, que transou (o primeiro com a Nicete) e, (o segundo, com a Beth).
Bete transou com o Francisco, que transou com a Valéria, que praticou sexo oral
com o Edmundo e com o Donizete, a um só tempo, em uma quitinete que ela possuía
perto da pracinha do bairro onde residia. Donizete, logo de manhã, pegou o
Gustavo, filho do carteiro, que, dias antes, havia dado para o Júnior, do
supermercado, que algumas horas saíra de um motel vagabundo, de beira de
estrada, com duas adolescentes conhecidas como “dupla tomba todos”.
Essa “dupla”, havia se deitado
com Vladimir e com Caetano, dois motoboys da pesada, que transaram com a Maria
Rita e com a colega dela, a Cassiane, que transou com Luiz Rogério, que transou
com a Solange, que transou com o Pereira, que transou com o Reynaldo, motorista
de praça, que transou com a Luma, secretária do juiz, que transou com o
Barcelos, que transou com a Geórgia, que praticou sexo anal com Christoffer,
que fez amor com a Maria Aparecida.
Maria Aparecida, vinte e nove
anos, poderia se dizer, uma bonequinha linda de morrer. Enfermeira chefe da
unidade de saúde local. Morava com os pais, fazia natação, balé clássico, e
ainda arranjava tempo para trocar uns amassos com o namorado Alarico, professor
de judô e karatê, com quem, aliás, todos os finais de tarde (quando não estava
de plantão), saia de casa para ir à academia e depois comer pizza e tomar
refrigerante na pracinha da matriz. Maria Aparecida lia bons livros,
frequentava altas rodas, tinha amigos, contudo, escondia, dentro de si, um
inimigo que nem ela sabia: o vírus do HIV. Era soropositiva... e apesar de
viver dentro de um hospital, ignorava inteiramente esse fato.
Também era uma vez, uma
gatinha linda, dezoito anos completos, chamada Manuela, que transou com
Valterly, que transou com Bia, que transou com Francisca, que transou com
Tarcísio, que transou com Simone, que transou com Enrico, que transou com
Mercedes, que transou com Cacá, que transou com Amaralina, que transou com
Pedrinho, que transou com a vizinha Carminha, que transou com Luiz Fernando,
que transou com a Ritinha, que transou com Joenildes, que transou com Verônica,
que transou com Afonso.
Afonso transou com Ilda, que
transou com Acácio, que transou com Isis, que transou com Kadu, que transou com
Débora, que transou com Fioravante, que transou com Tamy, que transou com
Felipe, que transou com Sara, que levou para sua cama dois jovens saradões e
cheios de tatuagens pelo corpo afora e que atendiam pelo nome de Rufus e Jason,
que transaram com Daniella e Angélica.
Angélica, que por sua vez
transou com Jarbas, que transou com Dorinha, que transou com Dimitriu, que
transou com Elaine, que transou com Bob. Bob, descuidado, transou com Florbela,
que transou com Paulo de Tarso, que transou com Mariane, que transou com
Fúlvio, que transou com Marlene, que transou com Fabrízio, que transou com
Waldívia que transou com Tom, que transou com Jô, que transou com a Lourdinha,
que transou com a Yanê, que transou com o Benedito, que transou com a Emiliana,
que transou com Sandro, que transou com a Ingrid, que transou com Mauro, que
transou com Keith, que transou com Lacerda, que transou com Diana, que transou
com Nobinho, que transou com Evandra, que transou com Rivi, que transou com
Charlene, que transou com Rogério, que transou com a Zizi, que transou com
Alarico, namorado de Maria Aparecida.
Maria Aparecida descobriu essa
traição do namorado, com a tal da Zizi. Em cidades pequenas do interior,
difícil alguma coisa desse tipo passar despercebida por muito tempo.
Literalmente trepada nas tamancas, e não só isso, querendo dar uma de marrenta
(“quem com ferro fere, com ferro será ferido -, proclamava, à boca miúda, para
os conhecidos”), a jovem enfermeira não titubeou. Deu o troco. Procurou pelo
Christoffer, seu dentista e transou com ele. Foi além dos limites do senso de
responsabilidade, como até então nunca havia ultrapassado mesmo com seu ex.
Não contente com o apronto,
voou mais longe. Ligou para o consultório do seu ginecologista, o doutor
Anselmo e marcou para dormir com o cidadão e, de lambuja, para incrementar a
noite seguinte, convidou um antigo paquera, um varapau de quase dois metros de
altura chamado Riquinho, que, por sua vez, transava há tempos, com a
Wanderléia, da funerária, que transou com o André e com o irmão dele, o Biel.
André não tinha nenhum tipo de doença e então conheceu Arminda, num desses
encontros de final de domingo, que acabou por lhe apresentar à Maria
Aparecida...
O que ambos, André e Maria
Aparecida possuíam em comum? Até o dia em que se cruzaram nada. Apenas a amiga
Arminda, que os uniu num papo firme e sem rodeios à saída do clube dos
funcionários, após uma estonteante balada que culminou com a apresentação do
grupo O Rappa. Aconteceu, entre eles, o tal do amor à primeira vista. Na mesma
noite fumaram baseados, beberam cerveja, misturam champanhe e vinho. Vinho e champanhe.
Não satisfeitos, para fechar o ciclo de loucuras, resolveram se curtir.
Terminaram na casa dele, ou melhor, na cama do quarto dele, completamente
bêbados, às quatro da manhã de uma segunda-feira fria e chuvosa...
UM ANO DEPOIS, EXATAMENTE UM
ANO DEPOIS, CHAMARAM A CASSANDRA QUE, EM NENHUM MOMENTO, APARECEU NESSA
HISTÓRIA (E SÓ NÃO PINTOU NA ÁREA PORQUE ERA FEIA, CEGA E CADEIRANTE).
CASSANDRA VEIO À BAILA PARA SER MADRINHA DE UM LINDO PIMPOLHO. NASCEU
TARCISINHO, FILHO DE MARIA APARECIDA E... E... E... SABE-SE LÁ DE QUEM. ATÉ AI,
MORREU NERO, A CARAVANA PASSOU, O BARULHO CONTINUOU NO CASTELO DA DINAMARCA, E
A BANDA TOCOU. INFELIZMENTE, OITO SEMANAS APÓS O NASCIMENTO DE TARCISINHO,
MARIA APARECIDO VEIO A ÓBITO, EXATAMENTE NO HOSPITAL ONDE TRABALHAVA COMO
ENFERMEIRA. O MOTIVO?! VÍTIMA DE AIDS.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De Santa
Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 29-8-2017
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