terça-feira, 29 de agosto de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Corrente

Aparecido Raimundo de Souza

“O mal do século está dentro de nós, vivo e pulsante, como um segundo coração. Todavia, somos tapados, ou melhor, hipócritas e imbecis, a ponto de não aceitarmos e, pior, desconhecermos completamente a sua presença mortal.”
Dráuzio Varella, médico e escritor.

ERA UMA VEZ UM CARINHA bonito, de olhos verdes, o físico perfeito, atlético, que andava por aí pela cidade numa BMW vermelha e se chamava Marcelo. Marcelo Aguiar. Um dia ele cismou e transou com a Soraia, colega de academia que, antes dele, havia transado com o Cauê, que dormira com a Regina, que transou com o Fernando, da farmácia, que transou com a Patrícia, que transou com o Rodrigo, que transou com a Valdinéia, que transou com o Alcebíades, que transou com a Vilma, que transou com o Paulo Ricardo, que transou com a Juliana, que transou com o Neimar.

Neimar que saiu com a Beatriz, que transou com o Flávio, que transou com a Gisele, que transou com o Ênio, dono da padaria, que transou com a Carla, da lojinha de conveniências do posto onde abastecia a sua motinha, que transou com o Ademar, frentista, do posto concorrente, que transou com a Gabriela, que transou com Jorge, que transou com a Bianca, que transou com Jonas, que transou com Domitila, que transou com Romão, que transou com a Fábia, professora e advogada num processo em que ela o defendia por pensão de alimentos.

Fábia, por sua vez, horas antes do almoço, transou com o Marco Aurélio e com o Gabriel, dois alunos seus, da faculdade, que transou (o primeiro com a Nicete) e, (o segundo, com a Beth). Bete transou com o Francisco, que transou com a Valéria, que praticou sexo oral com o Edmundo e com o Donizete, a um só tempo, em uma quitinete que ela possuía perto da pracinha do bairro onde residia. Donizete, logo de manhã, pegou o Gustavo, filho do carteiro, que, dias antes, havia dado para o Júnior, do supermercado, que algumas horas saíra de um motel vagabundo, de beira de estrada, com duas adolescentes conhecidas como “dupla tomba todos”.

Essa “dupla”, havia se deitado com Vladimir e com Caetano, dois motoboys da pesada, que transaram com a Maria Rita e com a colega dela, a Cassiane, que transou com Luiz Rogério, que transou com a Solange, que transou com o Pereira, que transou com o Reynaldo, motorista de praça, que transou com a Luma, secretária do juiz, que transou com o Barcelos, que transou com a Geórgia, que praticou sexo anal com Christoffer, que fez amor com a Maria Aparecida.

Maria Aparecida, vinte e nove anos, poderia se dizer, uma bonequinha linda de morrer. Enfermeira chefe da unidade de saúde local. Morava com os pais, fazia natação, balé clássico, e ainda arranjava tempo para trocar uns amassos com o namorado Alarico, professor de judô e karatê, com quem, aliás, todos os finais de tarde (quando não estava de plantão), saia de casa para ir à academia e depois comer pizza e tomar refrigerante na pracinha da matriz. Maria Aparecida lia bons livros, frequentava altas rodas, tinha amigos, contudo, escondia, dentro de si, um inimigo que nem ela sabia: o vírus do HIV. Era soropositiva... e apesar de viver dentro de um hospital, ignorava inteiramente esse fato. 

Também era uma vez, uma gatinha linda, dezoito anos completos, chamada Manuela, que transou com Valterly, que transou com Bia, que transou com Francisca, que transou com Tarcísio, que transou com Simone, que transou com Enrico, que transou com Mercedes, que transou com Cacá, que transou com Amaralina, que transou com Pedrinho, que transou com a vizinha Carminha, que transou com Luiz Fernando, que transou com a Ritinha, que transou com Joenildes, que transou com Verônica, que transou com Afonso.

Afonso transou com Ilda, que transou com Acácio, que transou com Isis, que transou com Kadu, que transou com Débora, que transou com Fioravante, que transou com Tamy, que transou com Felipe, que transou com Sara, que levou para sua cama dois jovens saradões e cheios de tatuagens pelo corpo afora e que atendiam pelo nome de Rufus e Jason, que transaram com Daniella e Angélica.

Angélica, que por sua vez transou com Jarbas, que transou com Dorinha, que transou com Dimitriu, que transou com Elaine, que transou com Bob. Bob, descuidado, transou com Florbela, que transou com Paulo de Tarso, que transou com Mariane, que transou com Fúlvio, que transou com Marlene, que transou com Fabrízio, que transou com Waldívia que transou com Tom, que transou com Jô, que transou com a Lourdinha, que transou com a Yanê, que transou com o Benedito, que transou com a Emiliana, que transou com Sandro, que transou com a Ingrid, que transou com Mauro, que transou com Keith, que transou com Lacerda, que transou com Diana, que transou com Nobinho, que transou com Evandra, que transou com Rivi, que transou com Charlene, que transou com Rogério, que transou com a Zizi, que transou com Alarico, namorado de Maria Aparecida.

Maria Aparecida descobriu essa traição do namorado, com a tal da Zizi. Em cidades pequenas do interior, difícil alguma coisa desse tipo passar despercebida por muito tempo. Literalmente trepada nas tamancas, e não só isso, querendo dar uma de marrenta (“quem com ferro fere, com ferro será ferido -, proclamava, à boca miúda, para os conhecidos”), a jovem enfermeira não titubeou. Deu o troco. Procurou pelo Christoffer, seu dentista e transou com ele. Foi além dos limites do senso de responsabilidade, como até então nunca havia ultrapassado mesmo com seu ex.

Não contente com o apronto, voou mais longe. Ligou para o consultório do seu ginecologista, o doutor Anselmo e marcou para dormir com o cidadão e, de lambuja, para incrementar a noite seguinte, convidou um antigo paquera, um varapau de quase dois metros de altura chamado Riquinho, que, por sua vez, transava há tempos, com a Wanderléia, da funerária, que transou com o André e com o irmão dele, o Biel. André não tinha nenhum tipo de doença e então conheceu Arminda, num desses encontros de final de domingo, que acabou por lhe apresentar à Maria Aparecida...

O que ambos, André e Maria Aparecida possuíam em comum? Até o dia em que se cruzaram nada. Apenas a amiga Arminda, que os uniu num papo firme e sem rodeios à saída do clube dos funcionários, após uma estonteante balada que culminou com a apresentação do grupo O Rappa. Aconteceu, entre eles, o tal do amor à primeira vista. Na mesma noite fumaram baseados, beberam cerveja, misturam champanhe e vinho. Vinho e champanhe. Não satisfeitos, para fechar o ciclo de loucuras, resolveram se curtir. Terminaram na casa dele, ou melhor, na cama do quarto dele, completamente bêbados, às quatro da manhã de uma segunda-feira fria e chuvosa...


UM ANO DEPOIS, EXATAMENTE UM ANO DEPOIS, CHAMARAM A CASSANDRA QUE, EM NENHUM MOMENTO, APARECEU NESSA HISTÓRIA (E SÓ NÃO PINTOU NA ÁREA PORQUE ERA FEIA, CEGA E CADEIRANTE). CASSANDRA VEIO À BAILA PARA SER MADRINHA DE UM LINDO PIMPOLHO. NASCEU TARCISINHO, FILHO DE MARIA APARECIDA E... E... E... SABE-SE LÁ DE QUEM. ATÉ AI, MORREU NERO, A CARAVANA PASSOU, O BARULHO CONTINUOU NO CASTELO DA DINAMARCA, E A BANDA TOCOU. INFELIZMENTE, OITO SEMANAS APÓS O NASCIMENTO DE TARCISINHO, MARIA APARECIDO VEIO A ÓBITO, EXATAMENTE NO HOSPITAL ONDE TRABALHAVA COMO ENFERMEIRA.  O MOTIVO?! VÍTIMA DE AIDS.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. De Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 29-8-2017

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