Aparecido Raimundo de Souza
MARCELO AUGUSTO ESTAVA em coma.
Completaria um ano em breve. Nesse tempo, a gostosona da mulher dele, a
Patrícia, além de estouvada e turbulenta, totalmente desinibida, se constituía
num pedaço de mau caminho, desses de dar água em boca de defunto. Ingressada
recentemente na casa das vinte primaveras, extremamente honesta e dedicada,
praticamente a jovem se mudara de mala e cuia para o hospital. E ali ficara,
colada à cabeceira do moribundo, dia e noite. Não arredava da aba nem para as
refeições. Amava o marido de verdade. Nutria por ele, um amor sem limites,
incondicional, sentimento, hoje em dia bastante escasso e até difícil de
encontrar na maioria dos casais.
De repente, abruptamente, tudo mudou da maneira como acontece nos
sonhos. Neles, se aceita o impossível, ao passo que na realidade, prevalece à
frieza do inaudito. Marcelo Augusto resolveu, pois, voltar à vida e, como num
passe de mágica sobrenatural, pimba!, acordou. A primeira coisa que fez ao se
situar no tempo e no espaço, foi um sinal para que a enfermeira mandasse chamar
a sua cara metade, no que foi prontamente atendido.
Havia, nesse centro de saúde, um tal de doutor Jorge Salazar Pimenta,
médico chefe da equipe de plantão que, desde o ingresso de Marcelo Augusto na
unidade, não saía de perto do sujeito. Com aquela história de monitorar o
paciente, de meia em meia hora, dava umas escapulidas do pronto socorro onde
atendia as emergências só para desfrutar momentos de agradáveis prazeres ao
lado da graciosa beldade que parecia ter caído do céu, de paraquedas, dentro de
seu coração.
Embora tivesse o compromisso ético de salvar vidas, o doutor Jorge
Salazar Pimenta passou a desejar, interiormente, que o agonizante fosse para os
quintos e deixasse, de vez, a chave de entrada da porta de acesso livre para
suas investidas. Única forma de atacar a linda presa em nome da tristeza que
sentiria pela perda do ente querido, apresentar as condolências à enlutada e,
de lambuja, doar seu ombro amigo à viúva desprotegida e frágil.
Porém, com o retorno inesperado da criatura ao mundo dos vivos,
pressentiu que suas chances de dar o bote certeiro no docinho de coco e a levar
para a cama caíram por terra. Todavia, se manteria em sua posição, decidido a
ir em frente e conquistar aquela fêmea maravilhosa, custasse o que custasse.
Não desistiria, jamais. De forma alguma. Mesmo que precisasse dar uma guinada
no quadro clínico e voltar com o filho da mãe do Marcelo Augusto para o estado
vegetativo.
- “Essa gazela será minha” - falava para si mesmo num frêmito
perturbado e jamais sentido. – Esse avião pousará no meu aeroporto e, eu,
dentro dele, viajarei por infinitos horizontes...
Patrícia, ao saber pela enfermeira que o marido voltara (havia ido até
em casa, às carreiras, para ver se a babá de seu filho de dois anos precisava
de alguma coisa), tomou um banho se perfumou, botou uma sainha curta, que
deixava à mostra as pernas bem torneadas e, no meio delas, uma calcinha
minúscula, como ele gostava, e regressou pressurosa, para seu posto. Ao chegar,
se aproximou sorridente, o rosto banhado na mais pura e dócil felicidade. Sua
alegria era tanta e tamanha, tamanha e tanta que alguma coisa solta no ar a
tornava mais bonita e pecaminosamente atraente, embora por dentro, o
coraçãozinho tão jovem (pela enfermidade do homem amado) estivesse cheio de dor
e desalento.
- Meu amor, graças a Deus! Pedi tanto a Nossa Senhora das Causas
Impossíveis. Ela, enfim, ouviu as minhas preces...
Marcelo Augusto, todavia, as faces esbranquiçadas e a mesma impudência
antiga nos olhos, soltou um longo suspiro e, numa subitânea prostração,
balbuciou esmorecido e nostálgico:
- Em compensação houve total rejeição aos meus anseios mais prementes.
- Não entendi a sua colocação, meu bem.
- Entenderá mais tarde. Entenderá mais tarde...
No que falava a mulher, se abriu num rosto corado, maroto, impecável,
os dentes brancos e perfeitos à mostra. Sentou na cama de modo que a jeans
curta e provocante, fizesse a sua parte, ou seja, deixasse entrever a pecinha
vermelha cobrindo a gruta do pecado. Abraçou o marido com carinho e ternura.
- Engraçado Pati. Estava aqui matutando. Durante todos esses anos você
esteve ao meu lado...
- E sempre estarei.
- Quando a minha empresa faliu, um mês depois que nos conhecemos...
- Não foi culpa sua. Seu sócio te roubou.
- Não importa. Lembra?
- Sim!
- Só você ficou e me apoiou.
- E sempre o farei, meu príncipe.
Antes de prosseguir Marcelo Augusto fechou os olhos e ficou algum
tempo calado, como se procurasse recobrar as forças.
- Na época que me prenderam por não pagar a pensão à minha ex-mulher,
você também estava comigo e me levantou a moral.
- Fiz das tripas coração para que não lhe faltasse nada na cadeia.
- É verdade. E olhe só: foram sessenta e oito dias...
- Sessenta e oito? Seu número de anos? Nunca me passou pela cabeça
anotar o tempo. Agora, meu amado, por tudo quanto é sagrado. Esquece de uma vez
desses problemas. Promete? Vamos falar
de sua saúde, da sua recuperação. Olhe em volta. Você está vivo. Isso é o que
faz toda a diferença. Nosso filho Dudu está grande e sapeca. Doido para rever o
pai de volta, como eu...
Marcelo Augusto, contudo, não parecia a fim de abandonar aquele
assunto relativamente chato, sendo trazido à baila, inclusive, numa hora tão imprópria.
- Quando perdemos a mansão de Paraty e o tríplex da Vieira Souto e
tivemos que nos sujeitar aquela espelunca de segunda, nos fundos da casa de sua
mãe, minha sogra, em Jacarepaguá, você se mostrou forte e segura, e, para meu
espanto, continuou a meu lado. Era ainda uma quase adolescente, acabara de
completar dezessete anos, mas não, você bateu pé, foi contra tudo e todos e
ficou e não só ficou se mostrou fiel.
- Jurei perante o altar, esqueceu?
- É certo.
- Te amo!
- Não duvido. Aliás, nunca pus essa questão, em cheque, embora toda
minha família me alertasse que você, na flor da juventude e, tendo em vista a
nossa diferença de idade, me poria, mais cedo ou tarde, um belo par de chifres.
- Jamais o trairia. Nem em pensamentos...
- Nem em pensamentos?
- Sequer em pensamentos!
- Tenho plena convicção de que está sendo verdadeira...
- Por falar nisso, meu amor, tem um doutorzinho aqui que está dando em
cima de mim.
- É mesmo? Quem é ele?
- O doutor Jorge Salazar Pimenta.
- Jumenta?
Risos.
- Não, amor, Pimenta.
- É bonito?
- Não tanto quanto você.
- Já se declarou?
- Nem precisou. Saquei desde a primeira vez em que entrou aqui.
- Cuidado. Se sair com esse sujeito, a pimenta dele vai lhe assar
todinha...
- Engraçadinho! Só você é o meu churrasqueiro profissional. Quero ser
assada, ou melhor, pretendo, em breve, voltar a ser tostada dos pés a cabeça
por você, meu lindo. Seu espeto me satisfaz. Não há pimenta que me aguce mais a
libido que esse fogo ardente que só você sabe produzir quando me pega.
- Sei, sei que não fala da boca para fora. Leve fé. Acredito. Mas não
é o caso, agora. Voltando a nós dois. Desde quando descobrimos a enfermidade e
a partir do instante em que fiquei com todos estes problemas de saúde, você,
igualmente, não abandonou a sua posição de me dar força e coragem.
- Na alegria, na dor, na saúde e na doença... fiz essa promessa.
Aliás, fizemos ambos...
- Sabe de uma coisa?
Os olhos da mulher se encheram de lágrimas. Viam-se, estampados neles,
a mais pura e sublime presença do amor e da ventura em toda a sua essência e
formosura.
- Diga meu amado...
Marcelo Augusto voltou a fechar os olhos por breves segundos antes de
voltar a abri-los e concluir o que lhe ia à mente.
- Apesar de tudo isso Pati... –
completou com uma inflexão acabrunhada -, sopesando todo esse amor que devota a
mim e ao nosso Edu. Acho que você, sua presença ao meu lado, sua força, sua
determinação, seu tratamento... enfim toda essa porra, se juntada, me dá e me
trás um tremendo azar. Em resumo: você é o meu lado ruim e sombrio.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro. 18-8-2017
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