Aparecido Raimundo de Souza
‘A morte é um passo absurdo. Junta os pés de todo mundo’
Lau Siqueira
EU TRAGO O CANSAÇO OFEGANTE
das estradas na poeira nojenta encravada em meu corpo. Os pés endurecidos e
calejados de passos, a voz embargada, enregelada por soluços e, no peito, as
dores traiçoeiras nascidas da solidão de todos que me desprezaram aos reveses
da sorte. Coladas em mim, me acompanham, as frustrações e malquerenças dos
seres humanos perdidos em lembranças e, no coração magoado, se fazem presentes
às batidas descompassadas pelos dissabores da revolta de estar sempre na busca
constante do nada.
Caminham comigo, lado a lado,
as desgraças e as misérias dos derrotados.
Igualmente, as infelicidades dos homens aflitos e os atravancamentos das
mulheres que não conseguiram galgar as aspirações e os sonhos que tinham ao
alcance das mãos. Estão sempre aonde quer que eu vá, ou esteja restos de amores
desfeitos, relíquias amargas e destroços mortiços e sombrios. Na verdade,
pedaços e porções das muitas alegrias interrompidas e não compensadas por
motivos outros que sequer ousaram vingar. E pelo andar da carruagem, nunca
ousarão.
Para me tornar mais nimbosa e
peçonhenta do que sou, tenho, no rosto, o trágico sorriso que as crianças
esqueceram. Nos lábios, palavras amigas jamais pronunciadas e, no sangue –,
bem, no sangue -, as partículas das maldades eternas se arrastando, toldadas,
como vermes malévolos pelas esquinas obumbradas do silêncio taciturnamente
constrangedor. Está guardada dentro de mim, a mais cruel das apoquentações
existentes na face da terra. Exatamente aquela que fere e não cicatriza. Que machuca
e não sara. Que faz doer e não se debela. Nunca se medica. A desgraça.
Além de não convalescer, na
mesma paulada, essa desgraça aniquila e definha, pouco a pouco, sem dar
esperanças de se acurar, ou de se consumar. Já não falo no vil e sórdido esmorecimento,
açoitado pelas brumas do mal, baralhada com a neurastenia, para, no minuto
seguinte, transformar a chuva fina que cai intermitente, num temporal de
fustigações cruéis, notadamente, nas vidas de cada um que visito. E eu patrulho
meticulosamente, vidas e vidas, todos os dias...
Por conseguinte, carrego as
desdouras inconstâncias dos fracassados, os insucessos dos desfortalecidos de
espírito, as fúrias dos oprimidos que sucumbiram (e sucumbem) em misérias e não
tiveram a coragem suficiente de moverem as barreiras do tempo para tentarem
mudar seus destinos no painel comum das acontecências. O frio esquálido das
masmorras e o vazio gélido e sepulcral das cadeias infestadas de cadáveres em
busca de luz são como sombras perniciosas a me protegerem. E maleficamente me resguardam...
Seguem meus passos, em trilho
contíguo, as angústias embaraçosas dos espectros apodrecidos nos pavilhões e
corredores dos hospitais e enfermarias, como, igualmente, a vã esperança de
cura para os atirados aos leitos dos nosocômios e sanatórios. De contrapeso,
conservo a fé destruída, exterminada, fragmentada em mil pedaços.
Constantemente, tenho ao meu redor, sob meus mandos e caprichos, uma multidão
de resignados e desiludidos, decepcionados e desenganados pelo câncer e pelo
fogo selvagem das doenças e moléstias incuráveis. E esses andrajos, a cada novo
dia, crescem de intensidade como as bactérias em meio a detritos a céu aberto.
Outros infortúnios e desditas
marcam assídua presença à minha beira: a separação dos casais, a desunião das
criaturas, os entulhos e as ruínas de lares desfeitos, as desalegrias e as
desesperanças enfraquecidas e narcotizadas dos que vivem em plena harmonia.
Atrapalho, de maneira fulminante, os cultivadores do bem e interfiro
diretamente na sorte dos não vaidosos e descaídos, colocando, em seus
calcanhares, as raias comuns das malquerenças, acompanhadas de densas nuvens
negras de embaraços e azares...
Eu trago mais. O canto ingrato
das agonias e urucubacas, as quimeras desfeitas, o transtorno brutal, o choro
convulso dos adolescentes e, de roldão, o desejo veemente de ferir a ilusão de
cada um, de lesionar profundamente cada ser vivente combalido e de agredir,
moralmente, aqueles gentios que caminham em busca de luz nas trilhas da paz
perene.
Eu trago, ainda, os presságios
escoriados da vida, os júbilos e as festanças, por menores que sejam me fazem
mal. O sol da primavera me golpeia os olhos e a noite me cega os sentidos. Por
essa razão, a quietude dos pântanos me agasalha os passos, a deformidade inópia
do passado é o meu escudo e a indigência da exacerbação minha maior aliada.
Eu tenho, comigo, a chave para
decifrar o enigma que toda humanidade busca. Por isso mesmo, sou o eterno
problema da vida, a pedra nos sapatos dos estudiosos, dos jovens de todas as
idades, dos namorados, dos noivos, dos velhos, das crianças. Eu desafio a
inteligência dos cientistas e me faço incógnita e insondada na equação de todos
os credos.
Eu me desordeno, ainda, por
inteira, na linha daqueles que sonham alto demais. Na verdade, eu me desfiguro
na barreira que atrapalha tanto o rico, na sua opulência, quanto o miserável na
sua desdita, almejando alcançar o ponto mais alto do pódio. Amo ser a maligna que derruba o “grande”, do seu
pedestal como, em contrapartida, empurro o “pequeno”, abismo abaixo. Destruo o
orgulho na sua arrogância e faço o copo trasbordar sem lhe acrescentar a gota
minguada.
Eu gero a força oculta nos
gestos que espalho. Nos menores trejeitos está a minha magnificência. Virei à
emboscada, a artimanha, o estratagema na individualidade do conduto de cada
pessoa. O buraco negro, de sete palmos de profundidade, onde todos,
indistintamente, terão de cair, vencidos, implorando clemencia, de joelhos,
curvados aos meus anseios.
Na cintura está, em ponto de
bala, a arma engatilhada para tolher aqueles que buscam conquistar um amanhã em
troca de qualquer coisa, seja a que preço for. Por conta disso, verguei à
perfídia dos que não tem religião onde se agarrar. Sou os olhos dos sem fé, as
mãos dos imbecis e as pernas dos sem Deus. Deveras, me resignei ao derradeiro
degrau da insolência. Posso ser encontrada no início, no meio ou no fim da
corrida, seja da carreira em busca de dias melhores, ou em ensaio à magia da
felicidade. Alimento e me regozijo em temperar o obscuro que está por vir
depois, bem ainda, o tenebroso de tudo o que ainda acontecerá num futuro
próximo.
Mesmo ângulo aprisiono e
encarcero os pecados. Detenho, a meus serviços, o vazio imensurável, a ponte
salvadora entre Deus e o homem. Tenho guardado, a sete chaves, o suspiro final.
O adeus sem volta, sem restituição, sem expectativa de ressurgir das cinzas.
Coloco nos olhos dos protagonistas desta terra, as lágrimas aflitas e
tormentosas da cruel e desumana saudade. Bem preservada, bem arquivada,
conservo a imagem do medo, na sua forma mais obscura de temperamento e rigidez.
O receio mórbido da morada após sepultura e o cheiro acre das flores perdendo o
viço, fenecendo lentamente num devagar sem pressa e sem retorno vem logo a
seguir.
Manipulo a bel prazer o
direito nas coisas que faço. Sou a advogada que defende. A promotora que
incrimina. A juíza que sentencia. Lado
igual, o carrasco que usa a sua lei perversa, para fazer da sua presa, a vítima
sem direito a qualquer tipo de argumento ou compaixão. Compaixão, aqui
entendida, no sentido amplo de se ver livre das minhas garras. Portanto, me
viro na corda do cadafalso, onde cada pescoço indistintamente se desvencilhará
do corpo... e virá para mim...
Por conclusão, sem tirar, nem
pôr, me ponho à gula, me arbítrio, à algema, me coto à autoridade que pesará na
hora de proferir o alvedrio que executará seu passamento desta para outro
andar. Vem de lambuja a maior de todas as justiças. A mais certa. A que não
deixa dúvidas. Oxalá, talvez, seja por todas essas e outras tantas razões, que
a medicina venha fazendo pesquisas e mais pesquisas, desde os tempos de Leviatã
e Moisés, para ver se encontra, dentro de mim, a doença que me definha o
espírito. Em verdade em verdade amadas e
amados compreendo e conscientizo que não tenho cura...
EU SOU A MORTE!...
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De Vila Velha, no Espírito Santo, 28-7-2017
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