Aparecido Raimundo de Souza
TENHO A FELICIDADE DE NÃO
saber o que é rancor. De não guardar raivas que não passam nem por reza braba.
De dar vida a mágoas profundas, embrenhadas no escondido de dias falecidos, ou
semanas e meses que só trouxeram dissabores estorvos e contrariedades. Quando
acontece surgir, do nada, um mal-entendido, algo não previsto, simplesmente me
sento diante do laptop e escrevo uma crônica.
Uma, duas, às vezes três. Como
agora. Não existe terapia mais racional que essa: escrever. É redigindo sobre
qualquer assunto que vem à mente, que extravaso as coisas ruins que estão
dentro de meu ser, às vezes até bloqueando, obstruindo o meu direito de ser
feliz em face de uma expiação que se criou desnecessária. Arre! Fora, todos os
flagelos e mortificações que me empatam e que me atravancam.
Nessas horas, ponho para fora,
em forma de historinhas curtas, os resquícios dos ódios e raivas, aporrinhações
e contrariedades que me atormentam. Em sobressalto igual, me livro das
tristezas ocultas que insistem em permanecer agarradas e coladas nas paredes
das minhas entranhas. Se não faço nada, não permito que a felicidade existente
dentro de mim flua com a intensidade devida, seguindo em frente, seu curso
normal, rumo ao sucesso pleno. O sucesso pleno, bem sabemos, está dentro de
nós. Basta que nos sintonizemos com ele, para que da mesma forma meridiana
exploda em toda a sua graciosidade e incandescência.
Não guardo mágoas. Não guardo.
Não acumulo dissabores e desagravos. Jamais. Não tolero revanches e
retaliações. Só quero viver e deixar que os outros sejam felizes. Cada um na
sua, numa boa. Nada de desassossegos e revoltas. De caras feias, de trocar de
mal. Acho que todas essas coisas são fúteis e só atrapalham o sujeito de
crescer diante de si mesmo e de ser completamente realizado.
A vida é curta, demasiadamente
pequena, insuficientemente breve para nos darmos ao luxo de ficarmos
alimentando sensações repletas de saldos negativos e contraproducentes, de
intolerâncias e desgostos sem pé nem cabeça.
Até bem pouco tempo, vivia em
disputa com meu eu interior. Tumultuava minha cabeça, desordenava meus
sentimentos. Não havia segurança. Caminhava a esmo, ao deus-dará, perdido,
extraviado, arrebatado, estuporado, tentando achar o “meu ausente” dentro de outras pessoas. A metade
faltosa do meu rosto, do meu sorriso, do querer maior que estava em algum
lugar, quem sabe acorrentado, esperando uma porta se abrir.
Percebi, porém, a tempo, que o
tempo continuava passando, transpondo, consumindo, finalizando, fenecendo, como
se nada tivesse acontecido. Feito um idiota apalermado, diante das próprias
incertezas, não atinava com a saída aberta, escancarada que se abria inteira,
sem meios termos, para a glória da quietude e da euforia. Essa alacridade
jubilosa me atropelava. Feria. Dava sinais de vida a cada novo minuto. Mas
cego, eu via tudo, menos a liberdade... de ser completo.
Na verdade, a emancipação que
eu buscava, estava pulsante, bem ali, à minha frente, bastando apenas dar
alguns passos e cair em seus braços e me aconchegar na sua realeza. O fato é
que meus olhos viviam vendados por uma tira de pano escura. Lúgubre, sombria,
enlutada, consternada. Não conseguia, por conta desse tétrico medonho, enxergar
nada, nem o mal que fazia a mim e ao meu espírito.
Todavia, apesar dos pesares,
consegui sobreviver. Cheguei até aqui. Seis décadas se passaram. O que aprendi,
aos sessenta, é que a idade, na medida em que o tempo avança nos vai lapidando,
e nesse esmero, nesse desbaste, fornecendo critérios lógicos e racionais para
que nos aprumemos e nos tornemos fortes, coesos e imbatíveis.
Aquela parte podre, oca,
doente, mesquinha, se desgarrou, se soltou, se desintegrou, dando lugar a um
discernimento mais complexo e maduro. O dom da vida é esse. A trilha, a
fórmula, é exatamente essa. Deixar para trás, o que é ruim o que dá azia, o que
provoca doenças incuráveis e fere.
Sobretudo, o que fere.
Abandonemos, pois amadas e amados tudo o que mata aos poucos e envelhece a
alma. A alma se contamina pela presença constante do obscuro. O obscuro é uma
desgraça em constante evolução. Uma vez vencido o tenebroso, o sol reaparece
com a elegância e a magnificência de uma porção que nos faltava para completar
a plenitude e sermos donos de nosso próprio nariz.
Outrossim, em solo idêntico,
aos sessenta, a gente se torna mais compreensivo, mais aberto a diálogos, mais
seleto, mais generoso, pelo menos com relação a nós mesmos. Não posso,
entretanto, dizer que sou, ou que me ache completamente realizado. Pelo menos
no sentido da consolidação profissional, na forma mais completa e ampla da
palavra.
Também não me considero um
desgraçado, um Zé-Mané da vida, sem teto, sem lar, sem amor, sem compreensão,
sem carinho. Sou realizado, claro, perfeito na minha maneira, mas sou. E qual
seria à minha maneira?
Bem, para in’icio de conversa,
a minha maneira é a mais simples e descomplicada possível. Costumo enfatizar
que me considero um livro aberto, acessível a quaisquer olhos ávidos por
emoções egocêntricas, ou às criaturas que apreciam uma boa leitura de fundo
romântico com pitadas de sensualidade à flor da pele. Claro que existem
capítulos onde tudo fala de saudade. Conto vivências passadas, casos mal
resolvidos, amores platônicos, deleites pecaminosos. Esses, então...
Mesmo trilhar explano os
sonhos realizados, os não chegados a termo, os que vingaram e os que não
chegaram, sequer, a se materializarem. Igualmente, disserto sobre os amores
mais loucos, todavia, que não cativaram certezas. Conto das mulheres que
passaram das aventuras que marcaram meu trilhar num desejo veemente de me ver
numa senda sem volta.
Ilustro, com o mesmo regozijo,
as criaturas que, apenas taparam buracos sem preencher vazios. Avalio as
lembranças que se eternizaram dentro do peito e, ainda hoje, apesar do avanço
dos anos, trazem boas recordações ao coração. Em suma, meu coração está
tranquilo. Que o diga meu cardiologista.
Tudo em mim é alegria,
desprendimento. Flano em ébrias asas, miro o amanhã ainda por vir, engalanado
em derredor de etílica felicidade que paira sobre meus cabelos esbranquiçados.
Igual um clique de máquina fotografando um modelito raro, me amplio em ilusões
imorredouras. E nelas viajo... vou longe...
Tudo passa a ser eventual,
dentro do que não é eventual, como o simples, como o faz de conta, como o
sentar na cadeira, ligar o computador e dar vida e forma aos personagens de um
conto fantástico, onde a divagação se confunde com a realidade e onde o agora
simplesmente é estar de bem com a vida, com os amigos, com os familiares, e,
sobretudo, estar vivo, respirando a lua bonita e sentindo na pele o passar das
horas gostosas... sem pressa.
Tudo passa a ser eventual,
repito. Vendo e sentindo a natureza, o cair da tarde, o passar dos dias,
contemplando a chegada das noites e, com elas, o infinito bem ali diante da
estupefação. Nesse arcabouço a
materialidade do firmamento e também do eterno pulsar de emoções incontidas, se
agigantam, se avolumam. E descambam na magia. A festança é, pois, o encontrar,
da porta. A bendita que não se achava que não se via e estava o tempo todo ali.
Com ela, a saída, a fenda, a fresta, a rachadura, o rasgão. De contrapeso, o
fascínio e o arroubamento. Em conclusão, a feitiçaria é dar de cara, de frente,
não só com a porta, porém, o mais importante, topar, incontinente, com a face
benfazeja de Deus Pai, o TODO PODEROSO.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De São Bernardo do Campo, Região do Grande ABC. São Paulo, Capital.
14-7-2017
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