terça-feira, 18 de julho de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Quando bolhas venenosas em olhos vazios vomitam palavras de péssimo sabor...

Aparecido Raimundo de Souza

LOPREFÂNCIO CELESTINO DA SILVA GROSSO estava, em coma, há meses. Perto, quase, de completar um ano. Nesse tempo, a gostosona da mulher dele, a doce e meiga Jacinta Leite da Silva Grosso (por sinal, um pedaço de mau caminho de dar água em boca de defunto), ingressada recentemente na casa dos vinte, extremamente honesta e dedicada, praticamente se mudara de mala e cuia para o hospital. E ali ficara, colada à cabeceira do moribundo, dia e noite. Noite e dia. Não arredava pé nem para as refeições. Amava o marido de verdade.

Nutria, por ele, um amor sem limites. Um querer incondicional, irrestrito, absoluto e ilimitado. Sentimento hoje em dia, por sinal, bastante raro, entanguido, escasso e até difícil de encontrar na maioria dos casais. Belo dia, ou mais precisamente num domingo à tarde, por volta das dezesseis horas, sem prévio aviso, Loprefâncio resolveu voltar à vida e, como num passe de mágica, pimba. Acordou para o mundo. A primeira coisa que fez, depois dessa longa viagem. Um sinal para que a enfermeira que o atendia, mandasse chamar a sua cara metade, no que prontamente veio a ser atendido.

Havia na unidade, é bom que se diga ,um sujeito que atendia pelo nome de doutor Tribulim Barfar, médico, por sinal, competentíssimo, da equipe de plantão que, desde o ingresso de Loprefâncio, não saíra de perto do moribundo. Com aquela história de monitorar o paciente, de meia em meia hora, dava umas escapulidas do pronto socorro onde atendia as emergências, tão somente para desfrutar momentos de agradáveis prazeres ao lado da graciosa beldade que parecia ter caído do céu.

Embora tivesse o compromisso ético de salvar vidas, acima de qualquer pretexto, razão ou circunstância, Tribulim passou a desejar, interiormente, que o agonizante fosse para os quintos e deixasse o caminho sem nenhum tipo de obstáculo. Única forma, no seu entender, de atacar frontalmente a linda e desprotegida presa em nome do amargor e do agastamento que sentiria pela perda do ente querido. Se algo imprevisto e esporádico, entre aspas, ocorresse, ele asclépio dedicado e devoto, se apressaria em apresentar as condolências à enlutada e, de lambuja, doar seu ombro amigo (entre outras partes) à viúva desprotegida e frágil.

Porém, com o retorno repentino e incogitado do sujeito ao mundo dos vivos, Tribulim pressentiu amargamente que as suas chances de dar o bote no docinho de coco e a levar para a cama e fazer dela, gato e sapato, em noites afogueadas de sexo animal, caíram vertiginosamente por terra. Todavia, se manteria em sua posição, decidido a ir em frente e conquistar aquela fêmea maravilhosa e extraordinária, custasse o que custasse. Não desistiria, nunca. De forma alguma. Mesmo que precisasse dar uma guinada no quadro clínico e voltar com o filho da mãe do Loprefâncio para as garras frias e obumbradas do coma.   

Jacinta Leite da Silva Grosso ao saber pela enfermeira que o marido voltara (havia ido a sua casa, para ver como estavam sua mãe e o filho que tivera com Loprefâncio), tomou um banho, se perfumou, botou uma sainha bem curta, como ele gostava, e voou para seu posto. Em lá chegando, se aproximou, sorridente, o rosto banhado em pura e doce felicidade. Sua alegria era tanta e tamanha, tamanha e tanta, que alguma coisa, solta no ar, a tornava mais bonita e pecaminosamente atraente, embora por dentro, o coraçãozinho tão jovem estivesse cheio de tristezas e dissabores.

- Meu amor, graças a Deus. Pedi tanto a Nossa Senhora. Ela ouviu as minhas preces... só tenho a agradecer. A isso, meu amado, pode se dar o nome de milagre. 
Loprefâncio se limitou a soltar um longo suspiro e balbuciar:
- Em compensação houve rejeição aos meus clamores.
- Não entendi meu bem. Seja claro.

No que falava e ao mesmo tempo chorava de alegria, a mulher se sentou na cama de modo que a sainha curta fizesse seu trabalho de sedução deixando entrever a calcinha no meio das pernas compridas e roliças cobrindo o minúsculo triangulo do pecado. Abraçou o marido com carinho e ternura. Ele, contudo, sem mostrar qualquer tipo de satisfação interior, se fez gelado e insatisfeito.
- Engraçado. Enquanto esperava por você, pensava com meus devaneios. Durante todos esses anos você esteve ao meu lado...

- E sempre estarei amor. Sempre estarei.
- Quando a minha empresa em Paraty faliu, um mês depois que nos conhecemos...
- Não foi culpa sua. Seu sócio te roubou. Ficou tudo provado no processo que você moveu em face dele.
- Não importa. Lembra?
- Sim! Perfeitamente.
- Só você ficou e me apoiou. O resto da galera me virou a cara...
- E sempre o farei, meu príncipe. Haja o que houver.

Antes de prosseguir Loprefâncio fechou os olhos e ficou algum tempo calado, como se procurasse recobrar as forças e as palavras certas a serem ditas.
- Na época em que me prenderam por não pagar a pensão alimentícia à minha ex-mulher, você também, ombro a ombro comigo, não se apartou, ao contrário, me levantou a moral.

- Fiz das tripas coração para que não lhe faltasse nada na cadeia.
- É verdade. E olhe que ironia: foram sessenta e oito dias... a minha idade.
- Sessenta e oito? Nunca me passou pela cabeça anotar o tempo. Agora, meu amado esquece esses problemas. Falemos de coisas boas. Da sua saúde, da sua pronta recuperação. Olhe em volta. Você está vivo. Isso é o que importa. O resto... vamos amor meu, nessa hora, dar vivas e graças ao Pai Maior. Você voltou do coma, está ótimo, se recupera rapidamente. Tenho certeza, dentro de poucos dias tudo ficará em ordem. Você voltará completamente recuperado. Logo estaremos de volta em casa. Nosso pequeno filho, o Loprefancinho está doido pra que você o abrace e beije. 

Loprefâncio, contudo, andava estranho, intrigado, alienigenamente forasteiro e esquisito. Não parecia disposto a abandonar aquele assunto relativamente chato e tedioso, inconveniente e desprazeroso, sendo discutido, inclusive, numa hora tão inapropriada e descabida.

- Quando perdemos a mansão na Barra da Tijuca e tivemos que nos sujeitar aquela espelunca de segunda, um casebre de um único cômodo, em Duque de Caxias, você se mostrou forte e segura e, para meu espanto e assombro, continuou decidida e firme a meu lado. Era ainda uma quase adolescente, acabara de completar dezoito anos. Mas não. Você ficou e se mostrou fiel.

- Jurei perante o altar, esqueceu?
- É certo.
- Te amo!
- Não duvido. Aliás, nunca pus essa questão em dubiedade, em oposto a toda minha família e não só a ela, meus amigos mais chegados me alertaram que você, na flor da juventude e, tendo em vista a nossa diferença de idade, me poria um belo par de chifres. Todos apostaram que eu seria corno. Chifrudo ou galhudo, como queira, por antecipação.
- Jamais o trairia. Nem em pensamentos.
- Eu sei... agora e só agora, eu tenho consciência disso.

- Por falar em chifres e ser corno, sabia que existe um doutorzinho aqui que está dando em cima de mim?
- É mesmo? Quem é ele?!
- Um tal de Tribulim.
- Trampolim?

Risos.

- Não, amor, Tribulim.
- É bonito?
- Não tanto quanto sua pessoa.
- Velho igual, mais novo ou...?
- Uns trinta e cinco. 
- E você?
- O que há comigo?
- Deu corda?
- Nem que fizesse meu tipo. Você é meu homem. Foi o primeiro em tudo.  
- O pária se declarou?
- Nem precisou. Saquei o lance desde a primeira vez em que entrou aqui.

- Sei, sei, mas voltando a nós dois. Desde quando descobrimos a enfermidade e a partir do instante em que fiquei com todos estes problemas de saúde, você, igualmente, não declinou da sua posição de me dar forças e coragem.
- Na alegria, na dor, na saúde e na doença... eu fiz essa promessa. Aliás, fizemos ambos...
- Sabe de uma coisa?
Os olhos da mulher se encheram de lágrimas espontâneas e doridas. Viam-se, estampados neles, a mais pura e sublime presença da castidade, do decoro e da honradez em toda a sua resplandescência. Jacinta em verdade, carregava a fibra de uma esposa de verdade. Não se podia rotulá-la como uma qualquer. Jamais seria aquilatada como mera aventureira, ou vadia à cata de dinheiro fácil.
- Diga meu amado... acabe o que pretendia dizer.

Loprefâncio voltou a fechar os olhos por alguns breves segundos antes de abri-los e concluir o que lhe ia à mente.
- Acho sinceramente que você, a sua presença ao meu lado, me dá, ou melhor, me traz... sim, é isso, Jacinta. Agora compreendo tudo... a sua presença e dedicação me dá ou dito de outra forma, me atira de cabeça, voo cego, num enorme poço onde me esborracho, sempre, incontinente, em tremendo e tétrico azar!!!
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De São Bernardo do Campo, Região do Grande ABC. São Paulo, Capital. 18-7-2017


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