Aparecido Raimundo de Souza
LOPREFÂNCIO CELESTINO DA SILVA
GROSSO estava, em coma, há meses. Perto, quase, de completar um ano. Nesse
tempo, a gostosona da mulher dele, a doce e meiga Jacinta Leite da Silva Grosso
(por sinal, um pedaço de mau caminho de dar água em boca de defunto),
ingressada recentemente na casa dos vinte, extremamente honesta e dedicada,
praticamente se mudara de mala e cuia para o hospital. E ali ficara, colada à
cabeceira do moribundo, dia e noite. Noite e dia. Não arredava pé nem para as
refeições. Amava o marido de verdade.
Nutria, por ele, um amor sem
limites. Um querer incondicional, irrestrito, absoluto e ilimitado. Sentimento
hoje em dia, por sinal, bastante raro, entanguido, escasso e até difícil de
encontrar na maioria dos casais. Belo dia, ou mais precisamente num domingo à
tarde, por volta das dezesseis horas, sem prévio aviso, Loprefâncio resolveu
voltar à vida e, como num passe de mágica, pimba. Acordou para o mundo. A
primeira coisa que fez, depois dessa longa viagem. Um sinal para que a
enfermeira que o atendia, mandasse chamar a sua cara metade, no que prontamente
veio a ser atendido.
Havia na unidade, é bom que se
diga ,um sujeito que atendia pelo nome de doutor Tribulim Barfar, médico, por
sinal, competentíssimo, da equipe de plantão que, desde o ingresso de
Loprefâncio, não saíra de perto do moribundo. Com aquela história de monitorar
o paciente, de meia em meia hora, dava umas escapulidas do pronto socorro onde
atendia as emergências, tão somente para desfrutar momentos de agradáveis
prazeres ao lado da graciosa beldade que parecia ter caído do céu.
Embora tivesse o compromisso
ético de salvar vidas, acima de qualquer pretexto, razão ou circunstância,
Tribulim passou a desejar, interiormente, que o agonizante fosse para os
quintos e deixasse o caminho sem nenhum tipo de obstáculo. Única forma, no seu
entender, de atacar frontalmente a linda e desprotegida presa em nome do
amargor e do agastamento que sentiria pela perda do ente querido. Se algo
imprevisto e esporádico, entre aspas, ocorresse, ele asclépio dedicado e
devoto, se apressaria em apresentar as condolências à enlutada e, de lambuja,
doar seu ombro amigo (entre outras partes) à viúva desprotegida e frágil.
Porém, com o retorno repentino
e incogitado do sujeito ao mundo dos vivos, Tribulim pressentiu amargamente que
as suas chances de dar o bote no docinho de coco e a levar para a cama e fazer
dela, gato e sapato, em noites afogueadas de sexo animal, caíram vertiginosamente
por terra. Todavia, se manteria em sua posição, decidido a ir em frente e
conquistar aquela fêmea maravilhosa e extraordinária, custasse o que custasse.
Não desistiria, nunca. De forma alguma. Mesmo que precisasse dar uma guinada no
quadro clínico e voltar com o filho da mãe do Loprefâncio para as garras frias
e obumbradas do coma.
Jacinta Leite da Silva Grosso
ao saber pela enfermeira que o marido voltara (havia ido a sua casa, para ver
como estavam sua mãe e o filho que tivera com Loprefâncio), tomou um banho, se
perfumou, botou uma sainha bem curta, como ele gostava, e voou para seu posto.
Em lá chegando, se aproximou, sorridente, o rosto banhado em pura e doce
felicidade. Sua alegria era tanta e tamanha, tamanha e tanta, que alguma coisa,
solta no ar, a tornava mais bonita e pecaminosamente atraente, embora por
dentro, o coraçãozinho tão jovem estivesse cheio de tristezas e dissabores.
- Meu amor, graças a Deus.
Pedi tanto a Nossa Senhora. Ela ouviu as minhas preces... só tenho a agradecer.
A isso, meu amado, pode se dar o nome de milagre.
Loprefâncio se limitou a
soltar um longo suspiro e balbuciar:
- Em compensação houve
rejeição aos meus clamores.
- Não entendi meu bem. Seja
claro.
No que falava e ao mesmo tempo
chorava de alegria, a mulher se sentou na cama de modo que a sainha curta
fizesse seu trabalho de sedução deixando entrever a calcinha no meio das pernas
compridas e roliças cobrindo o minúsculo triangulo do pecado. Abraçou o marido
com carinho e ternura. Ele, contudo, sem mostrar qualquer tipo de satisfação
interior, se fez gelado e insatisfeito.
- Engraçado. Enquanto esperava
por você, pensava com meus devaneios. Durante todos esses anos você esteve ao
meu lado...
- E sempre estarei amor.
Sempre estarei.
- Quando a minha empresa em
Paraty faliu, um mês depois que nos conhecemos...
- Não foi culpa sua. Seu sócio
te roubou. Ficou tudo provado no processo que você moveu em face dele.
- Não importa. Lembra?
- Sim! Perfeitamente.
- Só você ficou e me apoiou. O
resto da galera me virou a cara...
- E sempre o farei, meu
príncipe. Haja o que houver.
Antes de prosseguir
Loprefâncio fechou os olhos e ficou algum tempo calado, como se procurasse
recobrar as forças e as palavras certas a serem ditas.
- Na época em que me prenderam
por não pagar a pensão alimentícia à minha ex-mulher, você também, ombro a
ombro comigo, não se apartou, ao contrário, me levantou a moral.
- Fiz das tripas coração para
que não lhe faltasse nada na cadeia.
- É verdade. E olhe que
ironia: foram sessenta e oito dias... a minha idade.
- Sessenta e oito? Nunca me
passou pela cabeça anotar o tempo. Agora, meu amado esquece esses problemas.
Falemos de coisas boas. Da sua saúde, da sua pronta recuperação. Olhe em volta.
Você está vivo. Isso é o que importa. O resto... vamos amor meu, nessa hora,
dar vivas e graças ao Pai Maior. Você voltou do coma, está ótimo, se recupera
rapidamente. Tenho certeza, dentro de poucos dias tudo ficará em ordem. Você
voltará completamente recuperado. Logo estaremos de volta em casa. Nosso
pequeno filho, o Loprefancinho está doido pra que você o abrace e beije.
Loprefâncio, contudo, andava
estranho, intrigado, alienigenamente forasteiro e esquisito. Não parecia
disposto a abandonar aquele assunto relativamente chato e tedioso, inconveniente
e desprazeroso, sendo discutido, inclusive, numa hora tão inapropriada e
descabida.
- Quando perdemos a mansão na
Barra da Tijuca e tivemos que nos sujeitar aquela espelunca de segunda, um
casebre de um único cômodo, em Duque de Caxias, você se mostrou forte e segura
e, para meu espanto e assombro, continuou decidida e firme a meu lado. Era
ainda uma quase adolescente, acabara de completar dezoito anos. Mas não. Você
ficou e se mostrou fiel.
- Jurei perante o altar,
esqueceu?
- É certo.
- Te amo!
- Não duvido. Aliás, nunca pus
essa questão em dubiedade, em oposto a toda minha família e não só a ela, meus
amigos mais chegados me alertaram que você, na flor da juventude e, tendo em
vista a nossa diferença de idade, me poria um belo par de chifres. Todos
apostaram que eu seria corno. Chifrudo ou galhudo, como queira, por
antecipação.
- Jamais o trairia. Nem em
pensamentos.
- Eu sei... agora e só agora,
eu tenho consciência disso.
- Por falar em chifres e ser
corno, sabia que existe um doutorzinho aqui que está dando em cima de mim?
- É mesmo? Quem é ele?!
- Um tal de Tribulim.
- Trampolim?
Risos.
- Não, amor, Tribulim.
- É bonito?
- Não tanto quanto sua pessoa.
- Velho igual, mais novo
ou...?
- Uns trinta e cinco.
- E você?
- O que há comigo?
- Deu corda?
- Nem que fizesse meu tipo.
Você é meu homem. Foi o primeiro em tudo.
- O pária se declarou?
- Nem precisou. Saquei o lance
desde a primeira vez em que entrou aqui.
- Sei, sei, mas voltando a nós
dois. Desde quando descobrimos a enfermidade e a partir do instante em que
fiquei com todos estes problemas de saúde, você, igualmente, não declinou da
sua posição de me dar forças e coragem.
- Na alegria, na dor, na saúde
e na doença... eu fiz essa promessa. Aliás, fizemos ambos...
- Sabe de uma coisa?
Os olhos da mulher se encheram
de lágrimas espontâneas e doridas. Viam-se, estampados neles, a mais pura e
sublime presença da castidade, do decoro e da honradez em toda a sua
resplandescência. Jacinta em verdade, carregava a fibra de uma esposa de
verdade. Não se podia rotulá-la como uma qualquer. Jamais seria aquilatada como
mera aventureira, ou vadia à cata de dinheiro fácil.
- Diga meu amado... acabe o
que pretendia dizer.
Loprefâncio voltou a fechar os
olhos por alguns breves segundos antes de abri-los e concluir o que lhe ia à
mente.
- Acho sinceramente que você,
a sua presença ao meu lado, me dá, ou melhor, me traz... sim, é isso, Jacinta.
Agora compreendo tudo... a sua presença e dedicação me dá ou dito de outra
forma, me atira de cabeça, voo cego, num enorme poço onde me esborracho,
sempre, incontinente, em tremendo e tétrico azar!!!
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De São Bernardo do Campo, Região do Grande ABC. São Paulo, Capital.
18-7-2017
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