Paulo Tunhas
Mentir é necessário para preservar a
identidade cívica, a mentira é uma droga que deve sempre ser administrada aos
governados para o seu próprio benefício – uma droga útil, porque conducente à
virtude
Toda a gente se queixa das
chamadas fake news e da sua proliferação na sociedade
contemporânea. Há lamentos para todos os gostos, o mais comum sendo o que se
manifesta de forma nostálgica: saudades do tempo em que a internet não
existia e a informação que se recebia era transmitida unicamente pelos jornais,
a rádio e a televisão. Face a isto, não custa admitir as singularidades do
presente e as potencialidades do falso que as novas tecnologias trazem consigo.
Mas, sem mesmo explorar o seu óbvio avesso, as possibilidades de acesso ao
verdadeiro que oferece, algo há que convém ter sempre em mente: em tempos
anteriores, o falso seguia perfeitamente o seu caminho coroado de sucessos sem
precisar das “redes sociais” para nada. Apenas a título de exemplo, a
colossal impostura comunista beneficiou, ao longo do século XX, de uma espécie
de imunidade em relação ao desmentido empírico que exatamente o grosso da
televisão, dos jornais e da rádio lhe garantiam. Basta pensar no tempo que foi
possível (em Portugal, por exemplo) negar a existência do Gulag, dos campos de
concentração “soviéticos”. Aposto que ainda há, no PCP e talvez noutros
lugares, quem o faça. O mundo é assim, sempre foi assim.
A mentira em política tem, é
claro, uma longa história. Em todos os tempos se procurou uma visão das coisas
que criasse um molde geral para todas as crenças, com vista a assegurar a
estabilidade da sociedade ou com outros propósitos, sem preocupação especial pela
sua verdade ou falsidade intrínsecas, mas apenas pela sua eficácia prática,
que, no entanto, se apresentava como garantida pela verdade. Se era necessário
mentir, apresentar o não-verdadeiro como verdadeiro, essa mentira era nobre. O
tema da “nobre mentira”, da mentira que é suposta servir, por exemplo, o nobre
propósito da preservação da sociedade, encontra-se explorado logo desde o
início da filosofia política, na República de Platão.
Platão é infinitamente
complexo, mas não é sem dúvida caricaturá-lo apresentar a sua posição, no
exemplo da República, como a de defesa de um mito (o mito de Cadmo,
fundador de Tebas, segundo o qual teriam nascido armados da própria terra,
fruto da sua fecundação pelos dentes de um dragão morto, os antepassados das
famílias nobres de Tebas) para justificar a crença na autoctonia. Os cidadãos
nasceriam da própria terra, que seria quase literalmente a sua mãe, e seriam
entre si irmãos. O mito é falso, no sentido banal em que não corresponde a uma
verdade empírica, mas assinala, aos olhos de Platão, uma crença não só
desejável como indispensável para a sociedade. Convencer os elementos mais
importantes da sociedade da verdade literal do mito será obviamente uma tarefa
difícil, Platão não o ignora, mas, enquanto projeto educativo para as gerações
futuras, tal afigura-se exequível.
Mentir, por mais relutância
que tal nos deva inspirar, é necessário para preservar a identidade cívica, a
mentira é uma droga que deve imprescindivelmente ser administrada aos
governados para o seu próprio benefício – uma droga útil, porque conducente à
virtude. (Não há, em princípio, qualquer cinismo da parte de Platão: a sua tese
da necessidade do recurso político à mentira é perfeitamente compatível com a
sua outra afirmação da detestação filosófica pela mentira.)
As “nobres mentiras” continuam
a ser abundantemente praticadas hoje em dia e um dos meios da sua difusão é,
hoje como ontem, o das notícias falsas. As mentiras podem continuar a ser
nobres, mas são sem dúvida, pelo menos em parte, diferentes. Não digo que os
mitos de autoctonia, visando a preservação da identidade cívica, tenham
desaparecido, mas mitos opostos, exprimindo outros tipos de nobres mentiras,
ganharam nova circulação. Não é difícil observá-los por detrás de várias
notícias falsas. Produzem nobres mentiras que não visam a unidade da sociedade,
mas a sua separação.
Um exemplo: o vídeo que
apresenta o encontro, na confluência de três manifestações em Washington, entre
um estudante liceal de uma escola católica do Kentucky adepto de Donald Trump e
de um ativista índio, Nathan Phillips. Imediatamente após a difusão do vídeo, e
adoptando a narração de Nathan Phillips, todas as interpretações indicaram que
o estudante do liceu, rodeado pelos seus colegas, havia barrado o caminho ao ativista
índio, e, em parceria com estes, ridicularizado os seus cantos. Posteriormente,
visões mais completas das imagens, mostraram que nada havia sido assim e que a
descrição de Nathan Phillips era falsa. O que significa que a história, tal
como incialmente narrada, é uma história falsa — e, o que importa sublinhar,
uma história falsa inspirada por uma forma particular de “nobre mentira”
destinada a ilustrar a tese segundo a qual a sociedade vive num sistema de
opressão perpétua e violenta de todas as minorias por uma maioria agressiva e
dominadora. Acreditem na nobre mentira se querem alcançar uma maior igualdade
entre os seres humanos.
Um outro exemplo, igualmente recente,
mas desta vez nacional: as reações aos conflitos com a polícia no chamado
bairro Jamaica, no Seixal. Tanto Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, como um
senhor chamado Mamadou Ba, assessor do mesmo Bloco e elemento destacado do SOS
Racismo condenaram a polícia, o senhor Ba usando a expressão “bosta da bófia”
(repetiu posteriormente a expressão). No seguimento dos acontecimentos do
Seixal e da atividade opinativa, houve carros incendiados e outras efusões do
mesmo tipo. Não vale a pena comentar a selvajaria verbal de Mamadou Ba, mas
vale a pena sublinhar que a interpretação imediata dos acontecimentos iniciais
remete também ela para a “nobre mentira” referida em último lugar: é preciso
combater um racismo que se insinua em todos os interstícios da sociedade
portuguesa. Acreditem na nobre mentira e a sociedade será melhor.
Não pretendo dizer que todas
as notícias falsas que por aí circulam remetam para “nobres mentiras” que as
fundam e estimulam. Mas muitas delas sim. Sempre foi assim e não há razão
alguma para que tenha deixado de o ser. Esta constatação possui talvez alguma
utilidade. É que nos ajuda a ver, por detrás da tendência a oferecer uma
interpretação irrefletida, padronizada e quase compulsiva dos factos, o
princípio mítico que a governa, a mentira em que ela nos quer fazer acreditar,
que quer fazer passar por verdade indiscutível. Mente-se para o nosso bem, isto
é, para a nossa educação. Tal é o motivo único e exclusivo da mentira, se ela é
nobre.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
24-1-2019
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