domingo, 1 de agosto de 2010

Serra X Dilma: como votará a classe média?



A minha geração de brasileiros - a que entrou e saiu do ensino superior durante a ditadura militar acreditou no mito de que a redemocratização resolveria os nossos problemas de profunda desigualdade social, ignorância e miséria. Se foi o erro de uma geração, só posso utilizar uma comparação imediata que me vem à cabeça neste momento (por ter recentemente participado da cobertura da última Copa do Mundo). Como na África do Sul depois do final do apartheid, foi para o Brasil muito mais fácil conquistar sorrisos e comemorações à volta das eleições do que forjar um projecto nacional que impedisse a triste conclusão manifestada pela ONU na semana passada - a de que, na América Latina, apenas o Haiti e a Bolívia têm situações de desigualdade social mais agudas do que a brasileira.
Do período da "redemocratização" até as vésperas destas eleições passei 12 anos como correspondente no estrangeiro, dedicado especialmente a cobrir, a partir da Alemanha, os processos pelos quais passaram os antigos países da órbita soviética. Ao regressar ao Brasil, em 2000, dediquei metade da década seguinte à cobertura de crises na América do Sul, especialmente Argentina e Colômbia. Essas experiências profissionais e pessoais deixaram marcas indeléveis na minha maneira de analisar a realidade brasileira. Considero a esfera política a mais relevante de todas para tentar se entender o que acontece neste país-continente.
O nosso sistema político é pouco representativo e o considero a principal causa de nossos males. É curioso constatar que no Brasil ocorreria uma profunda revolução se aqui aplicássemos um princípio (desculpem, de novo, a comparação) que foi tão importante na África para derrotar o apartheid: o princípio doone man, one vote (um homem, um voto). Pois os políticos brasileiros deixaram intocado um ardiloso truque inventado pelos militares para manipular as eleições que permitiam durante a ditadura. Para se eleger os representantes do povo ao Legislativo (o Congresso em Brasília) são necessários menos votos em estados do Nordeste, por exemplo, do que em estados mais populosos do Sul e Sudeste.  Assim, o voto de um eleitor em Pernambuco tem mais peso do que o voto de um eleitor em São Paulo.
Em consequência, as áreas mais atrasadas têm um peso desproporcional na representação política em Brasília, o que interessa sobretudo às oligarquias nas quais se apoia o actual Governo.
Políticos sem vínculos
Uma segunda grave distorção do sistema político brasileiro é o facto de que deputados federais (ou estaduais, para o mesmo efeito) não estão necessariamente presos a uma "base" no sentido que se conhece na Europa, especialmente quando uma região é dividida em distritos (circunscrições).
Ou seja, um deputado que se eleja por São Paulo é obrigado a gastar uma pequena fortuna (em torno de 1 milhão de dólares) para se tornar conhecido num território do tamanho de um país como a Alemanha, sem a necessidade de manter um vínculo estreito com qualquer base mais clara. Os eleitores brasileiros em geral já se esqueceram de quem mandaram como seus representantes para o Congresso menos de dois meses depois da votação, pois não há um vínculo directo, na prática, entre representantes e representados.
Não vou entrar em mais detalhes do sistema político brasileiro para não tornar esta narrativa enfadonha. Cabe apenas mencionar que a qualquer Presidente brasileiro é impossível governar sem uma ampla maioria no Congresso - constituído por políticos sem ligações directas com o eleitorado e que, a cada geração, consideram o exercício da política apenas como prática de um negócio.
O financiamento das campanhas, necessariamente dispendiosas, e a obrigatoriedade de estabelecer alianças amplas no Congresso, baseadas em troca de favores (como a concessão de verbas para áreas de interesses dos deputados), estão na raiz de todos os nossos principais escândalos políticos envolvendo corrupção.



O fim de muitos mitos
O mito de que a democracia brasileira (de facto, uma das maiores do mundo) seria a condição necessária e suficiente para realizar o futuro de um país morreu depressa com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder. O partido era descrito como uma das poucas agremiações orgânicas (no sentido de possuir uma base clara e delineada, representando interesses articulados e definidos) na política brasileira - outro mito que ruiu depressa.
Os seus principais dirigentes apegaram-se depressa ao cínico princípio de que os fins justificam quaisquer meios. E os fins, no caso, são apenas o de permanecer indefinidamente no poder. A visão política do partido no poder hoje é limitada ao horizonte do necessário para ganhar eleições e garantir a sua base - funcionários públicos, empregados estatais, uma camada ociosa de dirigentes sindicais. O PT é a síntese perfeita de outros mitos nos quais a sociedade brasileira acredita: o de que o gigantismo estatista "faz" o desenvolvimento de um país; o de que o acesso ao consumo "faz" a cidadania; o de que apenas o voto "faz" uma democracia. E, principalmente, a difusa crença de que as mazelas do país se devem a alguma nebulosa conspiração urdida por "potências" (leia-se Estados Unidos, mundo ocidental, etc.) para impedir a realização do Grande Brasil. Esses mitos e crenças já existiam antes da chegada de Lula da Silva ao Planalto. A principal crítica que se pode fazer ao seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, é a de ter sido claudicante e tímido na reforma do Estado.
Em termos de mentalidade, uma categoria importante para se entender comportamentos políticos, o PT conseguiu com habilidade tornar sinónimos conceitos como privatização e roubo. Quando na verdade nunca o Brasil viveu, como acontece sob o Governo Lula, uma confusão tão grande entre o que é público e o que é privado.
Ao lado do problema do sistema político pouco representativo há dois fenómenos abrangentes importantes para a compreensão do Brasil de hoje. Um é a conquista da estabilidade monetária - algo que húngaros, alemães e austríacos conhecem muito bem a partir dos bem documentados exemplos de como a hiperinflação corrói uma sociedade.
A geração que vai votar pela primeira vez nem sequer tem a memória do que é assistir à remarcação de preços, até diária, num supermercado. Estabilidade monetária tornou-se um consenso social tão importante a ponto de obrigar os actuais dirigentes a fazer sempre uma manifestação de fé no controlo da inflação. 
Classe "C"

Aqui é necessário abrir um pequeno parêntesis: junto da estabilidade monetária o Brasil conseguiu, no ano 2000, a entrada em vigor de uma lei de responsabilidade fiscal (contra a qual o PT votou) tornando obrigatória a aplicação de um princípio que qualquer dona de casa conhece: a de que não vai se gastar mais do que se arrecada. E estabelecendo limites às folhas de pagamento de administrações em vários níveis.
Responsabilidade fiscal e estabilidade monetária permitiram em boa parte a subida dos padrões de rendimento e de consumo - com os quais se celebra hoje a ascensão de mais de 50 milhões de brasileiros ao patamar de classe "C", no jargão dos departamentos de marketing brasileiros.
Para padrões europeus, a subida dessas camadas sociais ainda é irrisória. Afinal, já faz parte da classe "C" (ou nova classe média, como preferem alguns, para evitar um sentido negativo embutido no "C") quem tem um orçamento doméstico mensal de uns 800 euros, que é mais ou menos a ajuda a um desempregado espanhol, por exemplo.
Esta não foi uma política de renda nacional (ao contrário do mito no qual o actual Governo se apoia), mas, sim, o resultado de decisões políticas tomadas anteriormente. Seja como for, o facto é de grande relevância política para as actuais eleições.
Já se conhece como essa nova classe média se comporta no supermercado, diante do gerente do banco (é extraordinária a expansão do crédito no Brasil, apesar dos juros reais mais altos do mundo) e na loja de automóveis (onde financiam o seu veículo a prazos de 70 meses ou mais). São consumidores cautelosos, conscientes claramente do que querem e exigem serem bem tratados. Mas como se comportarão nas urnas?
Os analistas de voto estabeleceram consensos em pelo menos dois pontos: essa nova classe média, ou classe média emergente, quer estabilidade, não gosta de experiências radicais e exige ordem pública. Pode, portanto, se inclinar para qualquer um dos dois principais  candidatos em Outubro - embora aquilo a que os analistas chamam feel good factor dê grande vantagem à candidata do governo. O problema central, porém, é o mal que oito anos de era Lula causaram ao sistema político brasileiro em termos de suas principais instituições.
O Presidente forneceu repetidas vezes péssimos exemplos de se considerar, a si e a seus amigos, acima da lei. Apropriou-se do passado do país e das obras dos antecessores como se o Brasil tivesse sido inventado por ele - como se tivesse ele dado as ordens a Pedro Álvares Cabral. Sendo que, se alguma coisa deu errado, não foi culpa dele. Lula popularizou no Brasil a desculpa do "não sabia" quando confrontado com malfeitorias dos seus colaboradores mais próximos. O pior, em termos sociológicos, foi o desprezo que manifestou por instituições.
Estudiosos das grandes transformações brasileiras costumam assinalar que a população em geral não encara "trabalho" e "educação" como valores intrínsecos, o que torna difícil forjar uma coesão nacional em torno de um projecto de país. Algo, aliás, já detectado pelos militares dos idos da ditadura. Acomodação em torno de novos padrões de consumo é pouco.
O Governo que agora se despede não promoveu qualquer reforma importante - política, económica, tributária, social, educacional, de saúde. Deixa para o sucessor nuvens negras no horizonte fiscal, dificuldades na balança de pagamentos, um sistema político que dependerá ainda mais do "dá-cá-toma-lá" mais pernicioso, desigualdades sociais inalteradas. Concordo que o balanço é pessimista - e que a minha longa carreira de 40 anos como repórter me inculcou uma considerável dose de cepticismo ao considerar políticos e a sua maneira de agir. Só acho que o Brasil, se quiser atingir a grandeza da qual tanto se fala, terá, em primeiro lugar, de parar de se contentar com pouco.

O autor desta análise passou pelos principais órgãos de comunicação do país: O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, revista Veja, TV Globo.William Waack foi durante 20 anos correspondente internacional e cobriu acontecimentos como a Guerra Fria, a Revolução Islâmica no Irão e a Queda do Muro de Berlim. Foi enviado especial em oito conflitos e guerras no Médio Oriente e nos Balcãs. Tem quatro livros publicados e ganhou duas vezes o Prémio Esso, o galardão de maior prestígio do jornalismo brasileiro. É actualmente pivô e editor executivo do Jornal da Globo, TV Globo, e do programa Painel, que analisa os principais assuntos do país e do mundo.

Jornal "Público", 01-08-2010



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